Jurídico

Cessão de créditos trabalhistas por FIDC na recuperação judicial

A cessão de crédito, prevista no artigo 286 e seguintes do Código Civil, pode ser conceituada como um negócio jurídico bilateral ou sinalagmático, gratuito ou oneroso, pelo qual o credor, sujeito ativo de uma obrigação, transfere a outrem, no todo ou em parte, a sua posição na relação obrigacional [1].

A princípio, a regra geral do Código Civil é que todo e qualquer crédito poderá ser objeto do contrato de cessão. Basta a cessão não ser contrária à natureza da obrigação, à lei, ou à convenção com o devedor.

Seu uso dentro do microssistema de recuperação judicial e falências, ainda com o soerguimento da Lei 11.101/2005, é bastante comum no que tange os créditos submetidos aos efeitos do concurso de credores classificados como créditos com garantia real e créditos quirografários. Isto porque são, essencialmente, créditos que tem como titulares pessoas jurídicas, muitas vezes bancos e grandes fornecedores das empresas em recuperação ou das massas falidas.

A lógica que permeia a utilização da cessão de créditos é o fomento do mercado de compra e venda de créditos pelos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Essa operação permite desonerar os credores originais do custo que é acompanhar os longínquos processos falimentares. De tal forma, cria condições para o soerguimento das empresas e os trâmites falimentares — a aquisição de créditos em uma condição mais favorável leva a deságios, acarretando lucro.

Nesse ponto não existe nenhum impasse ou entrave legislativo ou jurisprudencial que impeça tal prática. Basta apenas o cumprimento do artigo 286 e seguintes do Código Civil, e o cumprimento do dever de comunicação da lei de recuperação de empresas (decorrente do artigo 290 do CC).

Vale dizer que não há necessidade de concordância por parte do devedor, muito menos autorização judicial para eficácia do contrato de cessão de créditos, visto que se trata de um ato exclusivamente bilateral entre particulares, com legalidade presumida dentro das regras de existência e eficácia que permeiam os negócios jurídicos e contratos.

A grande dúvida é se a cessão de créditos dentro da recuperação judicial e falências pode ter como objeto os créditos de natureza trabalhista.

Digo dúvida pois, ao passo que avançamos na modernização do mercado financeiro permitindo operações cada vez mais céleres, eficazes e satisfatórias ao direito do particular (neste caso, a  manifestação da vontade de vender seu crédito de forma imediata, ainda que por um valor abaixo do valor real) teríamos do outro lado um acervo de jurisprudências e doutrinadores que barrariam este tipo de contrato para créditos trabalhistas. A alegação é de que tal operação macularia a natureza alimentar desta verba, o que afetaria a indisponibilidade e a irrenunciabilidade destes créditos.

A indisponibilidade e a irrenunciabilidade em debate se dão em razão da constituição personalíssima que o crédito trabalhista carrega.

Por outro lado, os defensores da possibilidade de a cessão de crédito recair sobre créditos trabalhistas apontam que não se observa óbice legislativo explícito que impeça tal negociação. Para concretizar estas operações, bastaria resguardar os preceitos legais do artigo 286 e seguintes do Código Civil, além dos requisitos de validade do negócio jurídico, quais sejam 1) agente capaz, 2) objeto lícito e 3) forma prescrita ou não defesa em lei.

Além disso, a Lei 11.101/2005 não possui nenhuma regra proibitiva ao tema. Pelo contrário: a lei 14.112/2020 acrescentou o 5º parágrafo ao artigo 83 da lei 11.101/2005, admitindo, para os fins do disposto na lei de recuperação e falências, a manutenção da natureza e classificação dos créditos cedidos a qualquer título.

Classificação dos créditos após concretização da cessão
Outro ponto que também causa dúvidas sobre o tema é o seguinte: partindo da hipótese de que se opere a cessão de créditos trabalhistas, como se classificaria este novo credor perante o concurso de credores? Em razão da natureza do crédito cedido, este credor se submeteria a condições mais vantajosas inerentes ao pagamento dos créditos trabalhistas ou seria reclassificado para classe de créditos quirografários, tendo que suportar os deságios e condições de pagamentos deveras precárias geralmente pactuadas para esta classe?

Na antiga Lei 11.101/2005 havia previsão de que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros seriam considerados quirografários. Porém, a lei foi substituída pela de nº 14.112/2020, que não tem mais tal previsão.

Desta forma, partindo da hipótese que a cessão de créditos trabalhistas é possível, o cessionário será submetido as regras de pagamento, e demais regras da lei de recuperação de empresas, na qualidade de credor trabalhista. Sempre será observada a relação original que originou o crédito, e não as transmissões futuras que poderão incidir sobre ele.

Considerando tudo que foi exposto, observamos que a cessão de crédito trabalhista deixa de ser um imbróglio nos processos de recuperação judicial e falência e passa a ser um instrumento jurídico possível e plausível para este tipo de processo. Tem potencial atrativo tanto para o trabalhador que se vê diante da possibilidade de receber seu dinheiro de forma antecipada, quanto para Fundos de Investimento que objetivem este nicho de créditos, fomentando este mercado.

Com a devida atualização legislativa, observa-se que os riscos inerentes ao negócio reduziram de forma bastante considerável — com a revogação do parágrafo quarto do artigo 83 da lei de recuperação de empresas — além do beneficiamento dos Fundos de Investimento em manterem a natureza do crédito cedido perante o processo recuperacional — com o acréscimo do parágrafo quinto do artigo 83 —, que garantem condições de pagamento melhores que os demais credores quirografários.

[1] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012. único. p. 380

João Filipe Carneiro Ribeiro é advogado da área Cível Empresarial.

Revista Consultor Jurídico, 23 de agosto de 2022, 17h07

https://www.conjur.com.br/2022-ago-23/carneiro-ribeiro-cessao-creditos-trabalhistas