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Apesar da abertura para o varejo, pequenos investidores seguem longe de FIDC. Mas pode dar match?

Apesar da abertura dos Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) para o varejo há um ano, a pessoa física não deve se tornar um investidor de relevância dentro da classe. Pelo menos não no curto prazo.

Desde que a resolução 175 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entrou em vigor, em 2 de outubro de 2023, apenas um produto para o público em geral saiu do papel: o Solis Pioneiro, um fundo que investe em cotas de FIDCs. Portanto, não um FIDC em si.

Especialistas ouvidos pelo Valor Investe afirmam ainda não enxergarem a demanda do varejo por esse tipo de fundo. Além da pouca oferta, o FIDC ainda parece “distante” do pequeno investidor.

Entre os motivos está principalmente a complexidade de acompanhar a oferta de direitos creditórios. O mercado de recebíveis no Brasil é heterogêneo, gira trilhões de reais em ativos de todos os tipos de empresas (de pequenas a gigantes, listadas em bolsa ou não), o que dificulta a avaliação de risco das carteiras. É preciso ser especialista e, em certa medida, entender até de contratos jurídicos para avaliar esses ativos.

Na outra ponta, mesmo após a liberação da classe, as restrições impostas pela CVM para que um FIDC possa ser aberto ao investidor em geral desmotivam gestores a estruturarem esses produtos.

Numa tentativa de controlar os riscos a que pequenos investidores se expõem nesta classe, a CVM liberou os FIDCs para o varejo, desde que respeitadas as seguintes regras:
 
  • pessoas físicas só podem comprar cotas seniores em FIDCs, que são aquelas com prioridade no recebimento de amortizações e juros e, portanto, são mais líquidas;
  • a carteira de um FIDC aberto ao público em geral só pode ter ativos de crédito performado, que são aquelas cujo produto já foi entregue ou o serviço já foi prestado. A oferta desse tipo de recebível no mercado é pequena;
  • o FIDC precisa ter rating (nota de crédito), quer dizer, precisa ser avaliado e acompanhado pelas agências de classificação de risco.

Pequeno investidor e FIDC: dá match?

Há um entendimento comum entre agentes que operam nesse mercado que o produto mais palatável para o pequeno investidor se expor a esta classe seria via fundos que investem em cotas de FIDCs e não diretamente num único FIDC.

“Desde a época da audiência pública para a resolução 175, defendemos que o caminho inicial para a pessoa física nessa classe deveria ser por um fundo de fundos”, afirma Ricardo Binelli, sócio-diretor da gestora Solis. E ele enumera os motivos para a escolha da gestora que levou à criação do Solis Pioneiro:
 
  • não há oferta contínua de FIDCs no mercado, considerando que muitos desses fundos são estruturas fechadas;
  • baixa liquidez, porque a dinâmica dos FIDCs é a de comprar uma cota e carregá-la na carteira por prazos longos. A característica tem relação com o ativo, os direitos creditórios, que têm prazos de vencimentos esticados e para os quais o mercado secundário não é trivial no Brasil; e
  • complexidade dos fundos, que podem ter lastros parecidos e investir em ativos semelhantes, mas se comportam de formas distintas de acordo com o contrato, o setor, a empresa e a regulamentação própria. Isso torna complexa a avaliação de um FIDC.
Um fundo que investe em cotas de FIDCs sana uma pequena parte dessas questões, como a da concentração de risco. A Solis, por exemplo, definiu em 10% o teto de exposição das carteiras dos seus fundos de fundos (FoF) a um único FIDC. “Mas geralmente ficamos com posições menores, de 6% [as maiores] quando o fundo está mais maduro”, pondera Binelli.

Outra parte dos problemas da classe a própria 175 tenta solucionar, como a questão dos riscos de inadimplência. A exigência de rating e restrição da carteira do FIDC para o crédito performado passam por aí.

Mas a baixa liquidez dos FIDCs não tem solução, na visão de Caroline Hees, diretora de crescimento da BYX, fintech focada em estruturação de crédito.

“Supondo que a classe queira estruturar FIDCs mais líquidos, com prazos de resgates menores, isso implicaria em todos os gestores irem para os mesmos produtos. Uma antecipação de recebíveis de um mês de uma loja pequena, por exemplo. Mas aí os spreads [diferença da taxa de retorno do ativo com um título público comparável] cairiam”, reflete a executiva.

No caso de um movimento massivo nesse mercado e da retirada do prêmio de risco, a rentabilidade dos ativos (e, consequentemente, dos FIDCs) tende a convergir para o CDI (Certificado de Depósito Interbancário).

“E aí o investidor do varejo deve preferir um fundo DI, que é um produto com liquidez diária e menos risco”, diz Hees. “É possível para um gestor construir fundos mais líquidos fazendo algumas escolhas e abrindo mão de outras características, como rentabilidade, por exemplo. Mas, mesmo com muitas trocas, não vai existir um FIDC de liquidez diária.”

Clelio Gomes, sócio-fundador da gestora Libertas, que trabalha com FIDCs, integra um grupo que não acredita que o público em geral vai ter apetite para entrar diretamente nesses fundos.

"O tipo de ativo com que a classe trabalha não é comum para que seja fácil para esse investidor menor e sem formação técnica acessar. A grande oportunidade para esse grupo acessar a classe é mesmo investindo nos fundos que compram cotas de FIDCs, porque aí ele delega essa seleção a um gestor. Acredito que é a melhor fórmula para a pessoa física", defende Gomes.

A história que os números contam

Os números do mercado podem parecer contar uma história diferente do cenário descrito, sobre o pequeno investidor ainda não ser o principal público da classe. De acordo com os dados da indústria, mais pessoas físicas investiram em FIDCs no último ano.

Segundo o relatório de fundos da Anbima, a associação que representa entidades do mercado de capitais, em agosto deste ano, os investidores pessoas físicas eram maioria entre os cotistas da classe, com 51,7 mil contas, que correspondem a 53% do total.

Esses dados tendem a ser interpretados sob a ótica dos efeitos da resolução 175. Neste sentido, a abertura da classe para o pequeno investidor do varejo teria atraído esse público para a classe.

Mas esta conclusão é equivocada porque há um ruído neste retrato: no fim de 2023, também foi promulgada a lei que instaurou para 2024 o regime de tributação periódica (chamada também de “come-cotas”) nos fundos exclusivos e que aplicam no exterior (os offshores).

Desde então, muitas dessas estruturas criadas para que investidores com grandes patrimônios pudessem alocar seus recursos foram desmontadas. Esse processo liberou no mercado de capitais as fortunas que estavam antes acomodadas nos fundos exclusivos e offshore, criando uma disputa por ativos abertos que oferecem boa relação risco-retorno.

Assim, os FIDCs entraram no radar dos investidores com grandes patrimônios.

Hees, da BYX, conta que a empresa vem sendo mais acionada este ano pelos family offices (escritórios de gestão de patrimônios familiares) e por gestoras que trabalham com investidores de alta renda.

“Esse público trouxe demandas para estruturar produtos menores - emissões de R$ 50 milhões, por exemplo -, ofertas específicas para essa base de investidores porque, dentro da estratégia de portfólio do cliente deles, faz sentido ter um FIDC”, explica a diretora.

Gomes, da Libertas, também nota o aumento da demanda do investidor qualificado*, que é o investidor individual com pelo menos R$ 1 milhão aplicados em ativos financeiros, e dos investidores profissionais* pessoas físicas (*entenda as classificações dos públicos investidores na tabela abaixo).

“É um grupo que já entende os mecanismos temporal e tributário do crédito e toma decisões de alocação do próprio portfólio”, diz o sócio da Libertas.

Conforme os dados mais recentes disponibilizados pela Anbima, dentro do grupo de investidores do varejo (que são as pessoas físicas), o de alta renda era o maior público dos FIDCs e também o que mais cresceu no último ano.

Os investidores endinheirados tinham 2,17 mil contas nesses fundos em junho de 2023, contra quase 21 mil contas em junho deste ano, ou seja, o crescimento foi de quase dez vezes nesses 12 meses. Já o varejo tradicional respondia por 2,8 mil contas em junho de 2024.

O público do varejo de alta renda sempre teve acesso a FIDCs por poder se enquadrar na classificação da CVM como investidor qualificado. E a diferença entre tudo que esse grupo investiu e o que resgatou dos FIDCs cresceu 8,5 vezes, de R$ 112 milhões de janeiro a julho do ano passado para R$ 1,07 bilhão no mesmo período deste ano.

“Uma parte relevante do fluxo de investidores que recebemos este ano veio do investidor qualificado e profissional. Mas, além da mudança tributária, tivemos um fechamento de spreads no crédito privado [taxas das debêntures caíram e esses ativos passaram a oferecer rendimento mais próximo daquele em título público similar]. Por isso, investidores institucionais (de alta renda, tesourarias de bancos, basicamente todo o mercado financeiro parece ter ‘descoberto’ a classe nos últimos meses”, diz Delano Macêdo, também sócio-diretor da Solis.

Como o investidor do varejo é classificado pelas entidades?
 
Grupo investidor/Classificação por entidade Anbima CVM*
Investidor pessoa física com menos de R$ 1 milhão aplicados Varejo Tradicional, o público em geral, sem distinção de segmento pela instituição financeira ou por volume investido Varejo,o público em geral, sem distinção de segmento pela instituição financeira ou por volume investido
Investidor pessoa física com R$ 1 milhão ou mais aplicados Varejo alta renda ou Private. Neste caso, a distinção é feita pelas instituições financeiras que reportam para a Anbima, que decidem conforme as próprias regras qual o mínimo para o cliente ser considerado um varejo alta renda. O teto para este grupo é de R$ 5 milhões investidor. Isso porque os privates são aqueles investidores com no mínimo R$ 5 milhões aplicados. Qualificado, precisa ter pelo menos R$ 1 milhão investidos e ter atestado por escrito a condição como qualificado
Investidor pessoa física com R$ 10 milhões ou mais aplicados Private, investidores com no mínimo R$ 5 milhões aplicados. Qualificado ou Profissional. O investidor profissional é aquele com certificação técnica e profissional e mais de R$ 10 milhões aplicados
Fonte: Anbima e CVM

*As categorias de investidores qualificados e profissionais da CVM podem incluir também pessoas jurídicas, como empresas, pequenos empreendedores, bancos, corretoras, fundos de investimento, seguradoras e entidades de previdência complementar. Neste quadro, são retratadas somente pessoas físicas.

O futuro dos FIDCs no varejo

Othavio Parisi, diretor-executivo da Central de Registro de Direitos Creditórios (CRDC), pondera que a entrada do varejo no universo dos FIDCs é tímida porque investidores e gestores da classe ainda estão na fase de “se conhecerem melhor”.

“Devemos ter mais ofertas de FIDCs para esse pequeno investidor no ano que vem. Os fundos também precisam aumentar seus mecanismos de segurança e garantias para poderem se abrir para o varejo”, diz.

Parisi lembra que, ainda no âmbito da resolução 175 da CVM, o gestor de FIDCs precisará registrar os direitos creditórios por ele adquiridos em uma entidade registradora. Esta é uma proteção extra a investidores.

“Esse processo é uma forma de garantir a unicidade do título, o que traz segurança jurídica. Sem essa obrigatoriedade, existem discussões jurídicas sobre quem tem o direito sobre o título quando mais de um ente ‘compra’ esse direito creditório - é o que chamamos de 'triplicatas', uma fraude. Quer dizer, essa mudança deve evitar esses caos e reduzir a inadimplência na carteiras dos FIDCs”, defende.

Na leitura do executivo da CRDC, embora o crescimento da classe hoje ainda não seja consequência da abertura dos FIDCs para o investidor pessoa física, existe um futuro de crescimento de relevância desse público no mercado. Para ele, é como se o solo ainda estivesse sendo preparado para a chegada desse novo grupo.

Os sócios da Solis também reconhecem que há uma curva de aprendizagem na classe. E não apenas da ponta do varejo entrando em contato com FIDCs pela primeira vez, mas também da perspectiva de gestores, que também estão conhecendo o comportamento desse novo tipo de investidor na classe.

“O [FIDC Solis] Pioneiro está com R$ 80 milhões em patrimônio, cerca de 1 mil cotistas e teve poucos pedidos de resgates nesses quatro meses de operação. Não queremos que o fundo chegue a R$ 2 bilhões de patrimônio da noite para o dia, porque isso seria até um problema. Não há tanta oferta [de ativos e FIDCs] no mercado”, explica Binelli. “A ideia é que o Pioneiro cresça de forma consistente para aprendermos a dinâmica desse público, porque aí vamos entender também se ele pode crescer dentro do nosso portfólio e qual vai ser a dinâmica de liquidez que o varejo pede.”

Para atender os pequenos investidores, a gestora só investe com o Pioneiro em cotas dos FIDCs que já se adequam às normas da resolução 175 para abertura do fundo ao varejo.

"Fizemos uma análise de quais fundos que investimos estavam mais próximos do público geral e conversamos com originadores para que se fizessem alguns ajustes e liberassem o produto para entrar no radar do Pioneiro. Alguns FIDCs se adequam ao regulamento que permite investir em crédito performado, mas não tinha esse tipo de ativo na carteira. Outros já tinham as características que a 175 estabelece para abertura do fundo ao varejo mas não faziam isso", explica Macêdo, da Solis.

A gestora deve colocar o Pioneiro para distribuição na plataforma de investimentos do Itaú em breve e está em conversas com a XP para disponibilizar o fundo para os clientes da corretora. Atualmente, o produto só está disponível na plataforma do BTG.

Mas a ideia de estruturar de um FIDC, propriamente, aberto para a pessoa física não foi completamente descartada pelos gestores da Solis.

Por ora, no entanto, o melhor caminho para o pequeno investidor é o que oferece mais segurança, defendem os especialistas. Por isso, a classe ainda se abre aos pequenos de forma indireta, com fundos que compram cotas de outros de FIDCs.

https://valorinveste.globo.com/produtos/fundos/noticia/2024/10/18/fidc-investidor-pessoa-fisica-pode-investir.ghtml