Economia

A Lei do Superendividamento dispensa regulamentação?

Cenário fático-jurídico

A Lei do Superendividamento[1] inovou o ordenamento jurídico ao incentivar a concessão do crédito responsável[2] e conferir ao consumidor uma ferramenta eficaz para superar um quadro episódico de superendividamento.

Desde a sua entrada em vigor, começaram a aportar no Judiciário inúmeros processos de repactuação de dívidas com fundamento no artigo 104-A do Código de Defesa do Consumidor, a fim de assegurar ao demandante a preservação de seu mínimo existencial.

Não obstante, a aplicação de diversos dispositivos da mencionada lei depende expressamente do conceito de mínimo existencial, cuja definição, para os fins instituídos pela norma protetiva, foi atribuída ao Poder Executivo por deliberação do legislador.

Surge, então, a seguinte dúvida: para os exclusivos fins da Lei do Superendividamento, é juridicamente viável a instauração do processo de repactuação de dívidas sem a prévia regulamentação do conceito de mínimo existencial?

Ineficácia técnica, densidade normativa e deferência 

O artigo 54-A, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, introduzido pela aludida lei, define o superendividamento como “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.

Dado o texto normativo, é fácil inferir que a caracterização do superendividamento exige a prévia regulamentação do conceito de mínimo existencial, sem a qual é impossível dessumir se o consumidor, de fato, está superendividado.

Posto em outros termos: 1) se o superendividamento pressupõe o comprometimento do mínimo existencial; e 2) se o conceito de mínimo existencial demanda regulamentação por expressa disposição legal; é forçoso concluir que, enquanto não sobrevier a predita regulamentação, as normas que tratam da repactuação de dívidas do consumidor superendividado carecerão de eficácia.

Nesse ponto, convém trazer à baila a lição de Paulo de Barros Carvalho sobre a eficácia técnica da norma, cuja ausência obsta o fenômeno da “juridicização do acontecimento” e a “propagação dos efeitos que lhe são peculiares”, in verbis:

“Sob a rubrica de eficácia técnica vemos a condição que a regra de direito ostenta, no sentido de descrever acontecimentos que, uma vez ocorridos no plano do real-social, tenham o condão de irradiar efeitos jurídicos, já removidos os obstáculos de ordem material que impediam tal propagação. Diremos ausente a eficácia técnica de uma norma (ineficácia técnico-sintática) quando o preceito normativo não puder juridicizar o evento, inibindo-se o desencadeamento de seus efeitos, tudo a) pela falta de outras regras de igual ou inferior hierarquia, consoante sua escala hierárquica, ou, b) pelo contrário, na hipótese de existir no ordenamento outra norma inibidora de sua incidência. […] Em ambos os casos, ineficácia técnico-sintática ou técnico-semântica, as normas jurídicas são vigentes, os sucessos do mundo social nelas descritos se realizam, porém inocorrerá o fenômeno da juridicização do acontecimento, bem como a propagação dos efeitos que lhe são peculiares” [3].

Por conseguinte, o legislador, ao sujeitar o conceito de mínimo existencial à regulamentação, afastou a plena eficácia dos artigos 6º, incisos XI e XII, 54-A, §1º, 104-A e 104-C, §1º, do Código de Defesa do Consumidor.

É importante sublinhar, ainda, que não se está diante de lacuna que possa ser colmatada com o emprego da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, na forma do artigo 4º do Decreto-Lei nº. 4.657/1942.

Na definição de Engisch, uma lacuna é uma “incompletude insatisfatória dentro da totalidade jurídica”, que se faz presente pela “intersecção do sistema com qualquer outro com o qual tenha limites”, daí advindo um estado de coisas “do qual não podemos dizer se pertence ou não ao sistema, ou mesmo se deve ou não pertencer ao sistema”[4].

A ausência de regulamentação do conceito de mínimo existencial, todavia, não é uma lacuna do sistema, uma incompletude a ser suprida pelo juiz, pois não diz respeito a uma conduta para a qual o ordenamento jurídico não ofereça qualificação.

De resto, para os fins da Lei do Superendividamento, a criação de norma casuística que permita a instauração e o trâmite do processo de repactuação de dívidas é de todo inconveniente.

Deveras, somente com a adoção de critérios minimamente objetivos: 1) os credores poderão avaliar se o plano de pagamento proposto pelo consumidor preserva não mais do que o seu mínimo existencial; e 2) o juiz será capaz de elaborar plano judicial compulsório que compatibilize eventuais medidas de temporização ou atenuação dos encargos com o resguardo do mínimo existencial. 

Ademais, a jurisprudência não fornece um conceito uniforme de mínimo existencial que possibilite a avaliação parametrizada do plano de pagamento proposto pelo devedor ou a elaboração do plano judicial compulsório. 

E o fato de o direito ao mínimo existencial possuir status constitucional, por si só, não autoriza a deflagração do processo de repactuação de dívidas, haja vista o escopo restrito da Lei do Superendividamento[5]. 

Vale notar que até mesmo alguns direitos fundamentais, que têm aplicação imediata, conforme o artigo 5º, §1º, da Constituição, demandam regulamentação para conferir direito subjetivo aos destinatários da norma. 

Veja-se, a propósito, o escólio do ministro Gilmar Mendes:

“Mesmo algumas normas constantes do artigo 5º da Constituição Federal não dispensam a concretização, por via legislativa, para que possam produzir efeitos plenos e mesmo adquirir sentido. […] A plenitude de efeitos dessas normas depende da ação normativa do legislador, porque essas normas constitucionais caracterizam-se por uma densidade normativa baixa. […]

Por isso, […] quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos indispensáveis que lhe assegurem aplicabilidade, nos casos em que a aplicação do direito pelo juiz importar infringência à competência reservada ao legislador, ou ainda quando a Constituição expressamente remeter a concretização do direito ao legislador, estabelecendo que o direito apenas será exercido na forma prevista em lei –, nessas hipóteses, o princípio do §1º do artigo 5º da CF haverá de ceder” [6].

Sob outra perspectiva, a da deferência devida ao legislador em um Estado Democrático de Direito, a conclusão a que se chega é a mesma: não deve o juiz contornar, pela via hermenêutica, a delegação promovida pelo poder legiferante.

Claudia Lima Marques informa que uma definição exemplificativa de mínimo existencial não foi aceita no plenário do Senado Federal, e o motivo foi exposto no parecer final do Senador Ricardo Ferraço, de seguinte teor:

“Incluímos, em todo o PLS, a previsão de regulamentação para definição de mínimo existencial. Isso acarretou em alteração dos artigo 6º, incisos XI e XII; art 54-A, §1º; artigo 104-A, caput; e artigo 104-C, §1º. Dos dispositivos mencionados, passou a constar da expressão ‘mínimo existencial, nos termos da regulamentação’. Em debate com diversos atores do direito consumerista, compreendeu-se que o conceito de mínimo existencial definido no PLS varia de indivíduo para indivíduo já que cada indivíduo possui um mínimo existencial particular que depende, entre outras, do número de dependentes, da renda total familiar e do montante dos gastos referentes a água, luz, alimentação, saúde, moradia e educação. Esta grande variabilidade torna o conceito de mínimo existencial impreciso e potencialmente gerador de incerteza jurídica. Tal argumento, por si, justificaria que se fizesse constar que os conceitos de ‘mínimo existencial’ e ‘superendividamento’ e sua aplicabilidade seriam definidos em sede de decreto” [7]. 

De mais a mais, sem um mínimo de lastro normativo, não é absurdo imaginar que os agentes financeiros simplesmente deixarão de conceder crédito a consumidores que já tenham parte significativa de sua renda comprometida.

Não se deve desprezar, portanto, o potencial efeito backlash que podem ensejar decisões que deem concreção casuística à norma, à míngua de conceito razoavelmente determinado de mínimo existencial, ainda que prenhes das melhores intenções.

Conclusão

Os artigos 104-A e 104-B do Código de Defesa do Consumidor, como anteriormente explanado, somente serão dotados de plena eficácia a partir da regulamentação do conceito de mínimo existencial.

Seja pela ineficácia técnica das normas introduzidas pela Lei do Superendividamento, seja pela baixa densidade normativa do conceito de mínimo existencial, não pode o julgador recorrer ao bypass hermenêutico para contornar a deliberação do legislador.

Logo, para concretizar os importantes direitos introduzidos pela Lei do Superendividamento, deve-se aguardar a desejada regulamentação da matéria, atualmente em estudo no Ministério da Justiça e Segurança Pública com a participação de diversos atores da sociedade civil[8].

[1] Lei nº. 14.181, de 1º de julho de 2021.

[2] A concessão de crédito responsável tem a finalidade de evitar a ruína do devedor e garantir a sua existência digna, objetivos de matriz constitucional consoante os artigos 1º, inciso III, 3º, inciso III, 6º, caput, e 170, caput, da Constituição.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

[4] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

[5] A professora Claudia Lima Marques denomina a noção de mínimo existencial introduzida pela Lei do Superendividamento de “mínimo existencial substancial de consumo”, cujo télos é a promoção da eficácia horizontal do direito fundamental à vida digna.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 154-155.

[7] MARQUES, Claudia Lima. Notas sobre a lei 14.181/2021: a noção de mínimo existencial e sua aplicação imediata. Revista de direito do consumidor, v. 137/2021, p. 387-405, 2021.

[8] Disponível em: . Acesso em 08.05.2022.

PEDRO OLIVEIRA DE VASCONCELOS – Especialista em direito público pela PUC-MG. Bacharel em direito pela PUC-MG. Juiz de Direito Substituto do TJDFT.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-do-superendividamento-dispensa-regulamentacao-24052022