TJSP - GRAVAÇÃO DE CONVERSA - PROVA LÍCITA - DESNECESSIDADE DO CONHECIMENTO DO INTERLOCUTOR QUE A CONVERSA ESTÁ SENDO GRAVADA

Gravação unilateral de comunicação telefônica realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro. Conteúdo que trata da validade de título de crédito. Temática que é afeta a processo em curso. Ausência de violação de sigilo telefônico, de direito à privacidade e à intimidade. Interpretação do art. 5º, X e XII, CF. Não configuração de prova ilícita. Desnecessidade de sua degravação por perito oficial. Admissibilidade de sua transcrição pela agravada. Teor da transcrição que poderá ser periciado posteriormente. Ausência de prejuízo processual. Agravo não provido.


PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

11ª Câmara de Direito Privado

Registro: 2011.0000144768

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 0044700-81.2011.8.26.0000, da Comarca de Tatuí, em que é agravante PAULO FERNANDO ESTEVAN sendo agravado LUCIA HELENA ARRUDA MORAES BERTANHA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA).

ACORDAM, em 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores GILBERTO DOS SANTOS (Presidente) e MOURA RIBEIRO.

São Paulo, 18 de agosto de 2011.

RÔMOLO RUSSO

RELATOR
Assinatura Eletrônica

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

11ª Câmara de Direito Privado

Agravo de Instrumento nº 0044700-81.2011.8.26.0000 - Tatuí 2/9

Voto nº 2360

Agravo de Instrumento nº 0044700-81.2011.8.26.0000 Comarca: Tatuí - 3ª VC

Ação: Ação de Origem do Processo Não informado

Agravante: Paulo Fernando Estevan

Agravado: Lucia Helena Arruda Moraes Bertanha

Gravação unilateral de comunicação telefônica realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro. Conteúdo que trata da validade de título de crédito. Temática que é afeta a processo em curso. Ausência de violação de sigilo telefônico, de direito à privacidade e à intimidade. Interpretação do art. 5º, X e XII, CF. Não configuração de prova ilícita. Desnecessidade de sua degravação por perito oficial. Admissibilidade de sua transcrição pela agravada. Teor da transcrição que poderá ser periciado posteriormente. Ausência de prejuízo processual. Agravo não provido.

Paulo Fernando Esteves, ora agravante, insurge-se contra a r. decisão que determinou a degravação pela própria agravada, de registro digital de conversas obtidas por meio de gravação telefônica clandestina por ela efetuada (fls. 222). Salienta que a referida prova não deve ser admitida em razão de: a) tratar-se de prova ilícita; b) haver violação de seu direito à intimidade; e, c) a degravação deve ser realizada por perito. Pede o provimento.

Recurso tempestivo, preparado e respondido (fls. 236/240).

É o relatório.

O ponto nuclear da questão trazida pelo agravo reside em verificar a licitude ou não da admissão como prova judicial a gravação unilateral de comunicação telefônica efetivada por um dos interlocutores.

Tal análise demanda o cotejo jurídico entre as garantias constitucionais de inviolabilidade das comunicações telefônicas (art. 5º, XII, CF), da inviolabilidade da intimidade e da privacidade (art. 5º, X, CF), e da inadmissibilidade das provas ilícitas (art. 5º, LVI, CF), em concorrência à garantia à ampla defesa processual com os meios a ela inerentes (art. 5º, LVI, CF).

Passo à análise, em primeiro lugar, da ofensa à garantia contida no art. 5º, XII, CF, pela gravação unilateral realizada pela agravada, vez que inexistindo norma legal que proíba especificamente tal prova, sua ilicitude e conseqüente inadmissibilidade (art. 5º, LVI, CF) decorreria da violação do sigilo, da intimidade e da privacidade.

Sobre esta temática, o insigne TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR observa que o objeto protegido pelo art. 5º, XII, da Constituição Federal, é a comunicação e não dados em si, garantindo que não ocorra a intromissão de terceiro na troca de informações entre o emissor e o receptor (Sigilo das operações de instituições financeiras, in Revista do IASP nº 9/162).

O eminente VICENTE GRECO FILHO preleciona que a gravação unilateral não constitui violação à garantia contida no art. 5º, XII, CF, em razão do sigilo existir em face de terceiros e não entre os interlocutores, os quais poderão divulgar o conteúdo da comunicação se houver justa causa, como a defesa de direito, e se não houver violação da intimidade do outro interlocutor (Interceptação telefônica, Saraiva, 1996, pp. 4/6).

Os ilustres ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO doutrinam que a gravação clandestina por um dos interlocutores, ambiental ou telefônica, não se insere no âmbito de aplicação do art. 5º, XII, CF, e não configura ilícito, ainda que não se tenha dado a conhecer ao outro partícipe da comunicação o fato de estar sendo gravada.

Pontuam que a divulgação da gravação caracterizará ilícito se houver afronta à intimidade pela violação de segredo, como definido pela legislação penal, sem que concorra justa causa excludente da antijuricidade, como a defesa de direitos subjetivos por quem divulgou a gravação (As Nulidades no Processo Penal, RT, 2004, pp. 237/240).

Em consonância com a referida doutrina, o Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 402.717, de relatoria do ínclito Ministro CEZAR PELUSO, por decisão unânime da Segunda Turma, reconheceu que, in verbis:

“não há ilicitude alguma no uso de gravação de conversação telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, com a intenção de produzir prova do intercurso […] se não pese, contra tal divulgação, alguma específica razão jurídica de sigilo nem de reserva, como a que, por exemplo, decorra de relações profissionais ou ministeriais, de particular tutela da intimidade, ou doutro valor jurídico superior. A gravação aí é clandestina, mas não ilícita, nem ilícito é seu uso, em particular como meio de prova.

A matéria se entende com o disposto no art. 5º, XII, da Constituição da República, o qual apenas protege o sigilo de comunicações telefônicas, na medida em que as põe a salvo da ciência não autorizada de terceiro, em relação ao qual se configura, por definição mesma, a interceptação ilícita.

Esta, na acepção jurídica […] está no ato de quem, furtivamente, toma conhecimento do teor de comunicação privada da qual não é partícipe ou interlocutor.

A reprovabilidade jurídica da interceptação vem do seu sentido radical de intromissão que, operada sem a anuência dos interlocutores, excludente de injuricidade, nem autorização judicial na forma da lei, rompe o sigilo da situação comunicativa, considerada como proprium dos respectivos sujeitos, que, salvas as exceções legais, sobre ela detêm disponibilidade exclusiva, como expressão dos direitos fundamentais de intimidade e liberdade […] quem revela conversa da qual foi participe, como emissor ou receptor, não intercepta, apenas dispõe do que também é seu e, portanto, não subtrai, como se fora terceiro, o sigilo à comunicação […] Tirante as situações excepcionais em que, no fundo, prepondera a exigência de proteção da intimidade, ou de outra garantia da integridade moral da pessoal humana, nenhuma consideração pode sobreporse à divulgação do relato de conversa telefônica, cuja a prova seja necessária à reconstituição processual da verdade e, pois, à tutela do direito subjetivo do proponente, ou ao resguardo do interesse público da jurisdição”.

Em idêntica exegese, no julgamento do Agravo regimental em agravo de instrumento nº 503.617, de relatoria do i. Ministro CARLOS VELLOSO, por decisão unânime da Segunda Turma, definira-se que, in verbis:

“Constitucional. Penal. Gravação de conversa feita por um dos interlocutores: licitude. Prequestionamento. Súmula 282-STF. Prova: Reexame em recurso extraordinário: Impossibilidade. Súmula 279-STF. I. - A gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita, principalmente quando constitui exercício de defesa. II. - Existência, nos autos, de provas outras não obtidas mediante gravação de conversa ou quebra de sigilo bancário. III. - A questão relativa às provas ilícitas por derivação 'the fruits of the poisonous tree' não foi objeto de debate e decisão, assim não prequestionada.Incidência da Súmula 282-STF. IV. - A apreciação do RE, no caso, não prescindiria do reexame do conjunto fático-probatório, o que não é possível em recurso extraordinário. Súmula 279-STF. V. - Agravo não provido”.

Ainda nesse sentido, no julgamento do Agravo regimental em agravo de instrumento nº 578.858, de relatoria da i. Ministra ELLEN GRACIE, por decisão unânime da Segunda Turma, fixara-se que, in verbis:

“Constitucional. Processo Civil. Agravo regimental em agravo de instrumento. Ação de indenização por danos materiais e morais. Gravação. Conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. Inexistência de causa legal de sigilo ou de reserva de conversação. Licitude da prova. Art. 5º, XII e LVI, da Constituição Federal. 1. A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita. Precedentes. 2. Agravo regimental improvido”.

Diante das ponderações dos referidos doutrinadores e dos citados precedentes tem-se que: I) a gravação de comunicação por um dos interlocutores não constitui ofensa ao sigilo das comunicações telefônicas; II) a divulgação de seu conteúdo é admitida quando houver justa causa e não houver violação da intimidade; III) a defesa de direito próprio configura justa causa suficiente à divulgação da gravação; e IV) há violação da intimidade quando houver divulgação de segredo, lato sensu.

Por conseguinte, não prospera a tese de que houvera a violação de sigilo pela gravação unilateral de comunicação telefônica.

Passo, pois, à análise da alegada violação à intimidade e à privacidade.

Doutrina o insigne JOSÉ AFONSO DA SILVA que o direito à privacidade abrange o conjunto de informações concernentes à pessoa, como as referentes às relações domésticas e afetivas, seus hábitos, pensamento e segredos, cuja comunicação está a seu exclusivo critério, já a intimidade, a qual é espécie do gênero privacidade, corresponde à esfera secreta da vida de cujo conhecimento o indivíduo tem o poder legal de excluir os demais (Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 2003, pp. 205/206).

Com efeito, a intimidade é vocábulo derivado do termo latino intimus, com origem no advérbio intus, compreendido como interior, oculto, o que está nas entranhas, de modo que, a intimidade corresponde àquilo que o indivíduo guarda para si e dentro de si.

Assim, a intimidade corresponde a um núcleo dentro da esfera da privacidade, em que a proteção se dá em grau maior em razão das informações ali encerradas serem de conhecimento de um número de pessoas mais restrito do que as demais informações que fazem parte da vida privada.

Tal exegese se afina com a doutrina alemã das três esferas concêntricas de HEINRICH HENKEL, divulgada no Brasil por PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR (O direito de estar só: tutela penal da intimidade, RT, 1995, p. 36), em que o grau de proteção aumenta gradativamente de uma esfera à outra: I) a esfera privada (Privatsphäre) contém as informações sobre as relações interpessoais mais amplas; II) a esfera da intimidade (Vertrauensphäre) em que as informações são compartilhadas com um número menor de pessoas nas quais o indivíduo deposita certa confiança; e III) a esfera do segredo (Geheimsphäre) que compreende as informações mantidas em segredo pelo indivíduo, a qual é contemplada pelo maior grau de proteção.

Com efeito, anote-se que no ordenamento jurídico pátrio, a divulgação de conteúdo de documento confidencial, ou de segredo profissional capaz de produzir dano
a outrem, encontra-se tipificada como ilícito penal (art. 153 e 154, CP).

Conforme se infere das afirmações da agravada, a gravação contém diálogo que travou com o agravante e sua esposa acerca da cobrança indevida de título de crédito (duplicata), sendo certo que o agravante não esclarece sobre a existência de outra informação íntima na gravação.

Por essa lente, crave-se que a divulgação do teor da gravação unilateral não é potencialmente violadora do direito à intimidade ou à privacidade do agravante, eis que a informação nela contida não se insere nestas esferas.

Outrossim, esta caracterizada, in casu, a presença de justa causa para a divulgação, vez que sua efetivação dar-se-á nos autos de processo civil, no qual a agravada defende direito material próprio.

Portanto, não havendo afronta ao art. 5º, X e XII, CF, não há ilicitude na transcrição da gravação unilateral em apreço, e em conseqüência, não há o que possa inquinar a sua admissibilidade processual.

Por esse pendor, cabe anotar que o C. STF reconhecera como prova válida a gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro (situação análoga à presente), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 583.937, de relatoria do i. Ministro CEZAR PELUSO, em sessão plenária por maioria de votos, em que foi conferido ao decisum o efeito do art. 543-B, § 3º, do CPC.

Por fim, quanto à possibilidade de degravação pela agravada, cabe marcar que a jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça é no sentido da desnecessidade de identificação dos interlocutores através de perícia técnica ou de degravação dos diálogos em sua integralidade por peritos oficiais.

Em tal exegese, são os precedentes in:

Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 3.655/MS, Sexta Turma, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA; Recurso Especial nº 1.134.455/RS, Quinta Turma, Rel. Min. GILSON DIPP; e, Habeas Corpus nº 91.717/PR, Quinta Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA.

Ademais, o teor da transcrição será objeto de contraditório, e caso entenda o agravante faltar-lhe fidedignidade, há a possibilidade de requerer que seja periciada a gravação, razões pelas quais não se verifica a presença de dano processual irreparável ou de difícil reparação, ainda que in abstrato pela autorização de que a agravada efetue a degravação.

Por esses fundamentos, meu voto nega provimento ao agravo, cessando o efeito suspensivo inicialmente concedido, ressalvado o direito ao agravado de impugnar no processo originário o teor da transcrição da referida comunicação telefônica.

RÔMOLO RUSSO