Jurídico

Sentença que decreta falência ou concede RJ da empresa e crimes falimentares

Por Fernando Nogueira

A sentença que decreta a falência ou concede a recuperação da empresa é termo inicial da contagem da prescrição da pretensão punitiva do Estado e é condição objetiva de punibilidade dos crimes falimentares.

Encerra conteúdo de direito penal material, porque diz respeito à pretensão de punir do Estado e à punibilidade, possibilidade jurídica de aplicação do direito penal material.

Cumpre dizer primeiro que a sentença que decreta a falência ou concede a recuperação da empresa constitui termo inicial dos prazos prescricionais previstos no artigo 109, do CP[1], porque é a partir desse ato jurisdicional que começa a correr o prazo para que o Estado-acusação exerça a persecução penal, ou seja, investigue o fato e, a depender do resultado da investigação, promova a ação penal.

Além de termo inicial da prescrição dos crimes falimentares, a sentença que decreta a quebra ou concede a recuperação judicial ou extrajudicial da empresa constitui condição objetiva de punibilidade dos crimes falimentares, ou seja condição indispensável para que o Ministério Público possa propor, perante o juízo falimentar[2], a ação penal por delito previsto nos artigos 168 a 178, da Lei nº 11.101/2005 (os crimes falimentares) ou mesmo a transação penal, a suspensão condicional do processo ou o acordo de não persecução penal ao autor do fato, atendidos os requisitos previstos na lei n. 9.099/95 ou no artigo 28-A, do CPP (modelos de justiça penal negocial conhecidos em nosso processo penal).

O legislador previu condição exterior ao tipo penal da lei falimentar, sem a qual o Ministério Público[3] não está autorizado a promover a ação penal.

A doutrina, desde a época da vigência do Decreto-lei n. 7.661/45, de forma predominante, abordava o tema no sentido de que a condição objetiva de punibilidade não era elemento do tipo penal falimentar.

Nesse sentido, Francisco de Assis Toledo ensinou que as condições objetivas de punibilidade não integram o tipo penal, porque são exteriores a ele, e, além disso, por sua natureza de ato judicial (tomando como exemplos a sentença de anulação do casamento e a sentença de decretação da falência), é extremamente difícil, senão impossível, dogmaticamente, explicar ou compreender esse ato do juiz como elemento do crime. [4] 

O Decreto-Lei n. 7.661/45 previa o decreto de falência como condição de procedibilidade da ação penal.

A Lei n. 11.101/2005, segundo ensinam Maria Rita Rebello Pinho Dias e Fernando Antonio Maia da Cunha, apesar de ter mantido a técnica da condição objetiva de punibilidade das infrações penais nela previstas, "...ampliou as suas hipóteses, para alcançar não apenas a sentença que decreta a falência, como também a que concede a recuperação judicial ou extrajudicial..."[5]

Disso resulta importante consequência: mesmo existindo crime falimentar previsto na Lei n. 11.101/2005, sem a sentença que tenha decretado a falência ou concedido a recuperação judicial, não há possibilidade jurídica de o Estado-acusação investigar o fato à luz dos crimes falimentares, propor ação penal ou mesmo a transação penal (art. 76, da Lei n. 9.099/95), a suspensão condicional do processo (artigo 89, da Lei n. 9.099/95) ou o acordo de não persecução penal (artigo 28-A, do Código de Processo Penal).

Pode-se afirmar que a condição objetiva de punibilidade dos crimes falimentares, mais as provas de materialidade e indícios de autoria do crime, compõem a justa causa que autoriza o Estado-acusação a instaurar procedimento próprio para investigar o crime falimentar e a buscar perante o Poder Judiciário a punição do autor do fato (mediante propositura de ação penal, nos termos do artigo 129, I, da Constituição Federal de 1988).

Isso não significa, porém, que o autor do crime falimentar, sem o implemento da condição objetiva de punibilidade mencionada, ficará impune, pois ele poderá responder por crimes comuns, previstos no Código Penal, como por exemplo estelionato (artigo 171), apropriação indébita (artigo 168), falsidade ideológica (artigo 299), falsidade documental (artigos 297 e 298), ou mesmo por crimes previstos em leis esparsas, como a lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98) e crime contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492/86), se houver elementos para tanto. 

E, se uma vez decretada a falência,  havendo inquérito policial em andamento ou ação penal em curso ou mesmo com sentença condenatória já definitiva, surgir decisão transitada em julgado de anulação da sentença que tenha decretado a quebra ou concedido a recuperação judicial?

Qual a solução a ser dada  para a investigação criminal e para a ação penal?

Nessa hipótese, a investigação criminal ou a ação penal deverão ser trancadas e o inquérito policial, processo criminal,  procedimento investigatório ou peças de informação correlatas serão  arquivados, por ausência de justa causa, extinguindo-se a punibilidade em relação ao crime falimentar.[6]

O desaparecimento da condição objetiva de punibilidade[7] retira irremediavelmente a justa causa que dava suporte à investigação criminal ou à ação penal por delito falimentar.

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[1] Nos termos do art. 182, da Lei n. 11.101/2005, a prescrição dos crimes falimentares regula-se pelo disposto no Código Penal, e começa a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. 

[2] No Estado de São Paulo, por força da Lei estadual n. 3.947/83, declarada constitucional pelo STF no RHC 63.787-6/SP, em 27 de junho de 1986, Relator o Ministro Rafael Mayer, os crimes falimentares são de competência do juízo falimentar, universal. 

[3] De acordo com o art. 184, caput, da Lei n. 11.101/2005, os crimes falimentares são todos de ação penal pública incondicionada.

[4] (Princípios Básicos de Direito Penal. 3 ed. São Paulo, Saraiva, 1987, p. 143-144). 

[5] Rebello Pinho, Maria Rita; Maia da Cunha, Fernando Antonio. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p.  895.

[6]  Maria Rita Rebello Pinho e Fernando Antonio Maia da Cunha, nesse sentido, observam que “na hipótese de já ter se instaurado inquérito policial, oferecida denúncia ou proferida sentença condenatória contra o sujeito ativo, deverá ser providenciado o trancamento do inquérito, a rejeição da denúncia, ou o acolhimento de eventual recurso ou revisão criminal para extinção da ação penal, respectivamente” (ob. cit., p. 896).  

[7] “A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou homologa a recuperação extrajudicial é condição objetiva de punibilidade quando a conduta puder ser praticada anteriormente.
Assim, eventuais atos fraudulentos tendentes a causar prejuízo aos credores são puníveis como crime falimentar se a referida sentença for prolatada, caso contrário, ou os atos serão atípicas ou caracterizarão outros crimes que não os falenciais...”  (informações complementares à ementa proferida no julgamento do AgRg nos EDcl no AREsp 745816 / RJ
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2015/0172256-0, Relator o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, no dia 21 de março de 2017).

Fernando Nogueira é promotor de Justiça no Estado de São Paulo desde outubro de 1988, atualmente na Promotoria de Justiça de Falências e Liquidação Extrajudicial de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2023, 8h35

https://www.conjur.com.br/2023-mai-29/direito-insolvencia-sentenca-decreta-falencia-ou-concede-rj-empresa-crimes-falimentares2