Economia

Fintechs de crédito vivem 1ª crise e se viram nos 30 para emprestar a juro baixo

Em um país em que o crédito é um nó bastante embaraçado - que mistura pouca educação financeira, oferta abusiva, juros altos e acesso restrito - as fintechs de empréstimos cresciam aceleradamente, tentando desembaraçar esse nó. Com incentivo do Banco Central, sua proposta era oferecer taxas mais baixas para quem tem mais capacidade de pagamento e acesso a crédito para quem não tem. Mas, agora, essas empresas vivem sua primeira crise, de supetão, e precisam se virar nos 30 para seguir sua trajetória.

O Brasil tem hoje mais de 100 fintechs de crédito, que representam cerca de 20% do total de fintechs no país, segundo a Associação Brasileira de Fintechs (Abfintechs). Nas fintechs, a demanda por crédito cresce à medida que a crise do coronavírus piora, pessoas e pequenas e médias empresas precisam de dinheiro e os bancos restringem a oferta de empréstimos. O problema é que elas precisam ter dinheiro suficiente para emprestar e lidar com o maior risco de inadimplência.

“Está todo mundo se virando nos 30, enxugando custos e prolongando o caixa”, diz Fábio Neufeld, líder da vertical de crédito da Abfintechs. “Vai ser o primeiro teste de fogo em um cenário adverso. Agora que vamos ver de fato a qualidade da análise de crédito dessas fintechs e quem vai sobreviver.”

Antes da crise, as fintechs viviam um cenário de abundância de recursos captados para emprestar. Grandes investidores eram os provedores de capital das fintechs, entusiasmados com as novas empresas em um mundo de juros baixos. Agora, porém, eles estão com a mão fechada, avessos a risco. A falta de dinheiro tende a limitar o volume de concessões de crédito.

A Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD) projetava triplicar a oferta de crédito em 2020 em relação a 2019 e atingir R$ 10 bilhões de novos empréstimos. Agora, a associação prefere não fazer uma projeção com tanta incerteza no radar, mas diz que a oferta de crédito será menor do que esperava para este ano.

Fintechs pedem ajuda do BC e do governo

Para enfrentar os efeitos da pandemia do novo coronavírus na economia e evitar uma quebradeira generalizada, o Banco Central (BC) e o governo anunciaram medidas para aumentar o dinheiro que os bancos têm em caixa para emprestar. Mas as fintechs de crédito também querem ajuda para aumentar seu capital e conseguir emprestar para seus clientes.

O Conselho Monetário Nacional (CMN) já autorizou que as fintechs de crédito passem a emitir cartões de crédito, para facilitar o acesso ao crédito. O Banco Central argumentou que essas empresas têm a capacidade de atingir mais pessoas, com mais capilaridade, e podem atender “segmentos com reduzido histórico de crédito no país”, como micro e pequenos empresários.

A resolução também permite que as fintechs classificadas como Sociedade de Crédito Direto (SCD), que realizam operações de crédito a partir de capital próprio, possam atuar como agentes repassadores de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Isso permite que elas continuem atendendo clientes mesmo sem recursos próprios.

No entanto, para as fintechs, só essas medidas não são suficientes. Até porque somente 24 fintechs de crédito são reguladas como SCD ou Sociedade de Empréstimo entre Pessoas (SEP), o outro modelo possível. A maioria delas atua como correspondente bancária, com uma instituição financeira parceira por trás, e é menos capitalizada.

Segundo o BC, a nova regra também procura utilizar a capilaridade das fintechs para torná-las “um importante canal de realização de políticas públicas”.

A ideia é que essas fintechs menores também possam servir de ponte para repassar o dinheiro que o governo tem liberado para empresas e pessoas na crise. As empresas querem, por exemplo, repassar o auxílio emergencial de R$ 600 ou R$ 1.200 a trabalhadores informais. Elas argumentam que muitas atendem clientes que não têm conta em banco e que elas têm agilidade para fazer o dinheiro chegar.

“Estamos nos movimentando para apresentar soluções para as fintechs usarem sua capilaridade para ajudar a economia a girar por meio do crédito”, diz Neufeld, da Abfintechs.

Segundo o Valor apurou, o Banco Central e os representantes das fintechs iniciaram estudos para a criação da figura de um “correspondente digital”. Seria um grupo formado pelas fintechs, que mantêm uma plataforma para prestar serviços financeiros e distribuir crédito em momentos emergenciais, como agora, para as pessoas físicas e jurídicas. Resta saber se essa figura vai ser desenvolvida a tempo da crise atual.

Novas taxas, prazos e valores

O problema da falta de recursos captados depende de agentes externos como o Banco Central, o governo e grandes investidores para ser resolvido, mas as fintechs dizem que lidam com o risco de maior inadimplência do seu jeito. Mais do que nunca, elas usam seus algoritmos para apurar a capacidade de pagamento dos tomadores. Combinam dados fornecidos pelos clientes com informações adquiridas em centenas de fontes na internet para definir o valor do empréstimo, as taxas de juros e o prazo de pagamento para cada um.

“O lado tech nunca foi tão importante”, diz Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD). Assim, em vez de só restringir o acesso ao crédito, as fintechs conseguem fazer uma análise mais personalizada da capacidade de pagamento do cliente nesse momento de crise e remodelar suas políticas de crédito. A intenção é oferecer um empréstimo que caiba no bolso do tomador e da empresa, para que a transação seja saudável para os dois lados.

Quem captou mais recursos consegue até reduzir taxa de juros, estender prazo de pagamento ou reduzir o empréstimo mínimo. É o caso da Pontte, especializada em empréstimo com garantia de imóvel, que reduziu a taxa de juros mínima de 0,99% para 0,85% ao mês. A fintech também estendeu o prazo de pagamento de 180 para 240 meses e baixou o empréstimo mínimo de R$ 50 mil para R$ 30 mil.

A empresa diz que conseguiu remodelar sua política de crédito durante a crise porque tem recursos garantidos de um investidor estrangeiro e montou um desenho que aguentava “desaforo” no caixa por vários anos. “As startups voltarão a ter um plano de negócios no Excel e não no Power Point”, diz Marcelo Lubliner, CEO da Pontte. “Não vai ter novas rodadas de 'funding' em um prazo curto e será preciso cuidar bem desse caixa.”

Mais do que controlar as taxas e os números do caixa, Lubliner diz que agora é hora de olhar a fundo para quem está pedindo o crédito. “Em uma hora como essa de mais dificuldade, não adianta apertar mais o cliente para devolver porque eu vou aumentar a inadimplência. Se ele não está me pagando é porque não consegue. Então, como eu ajudo o cliente e a mim mesmo? Dando flexibilidade”, diz.

Flexibilidade é a palavra chave no discurso das fintechs de crédito para sobreviver neste momento de crise. Várias delas estão oferecendo condições especiais de renegociação.

“Apesar de os bancos dizerem que estão abertos para renegociar, ouvimos de muitos clientes que o gerente enrola e a parcela acabava vencendo antes deles conseguirem resolver seu problema. Os bancos vendem uma solução que, na prática, não conseguem operacionalizar”, diz Daniel Gomes, CEO e sócio-fundador da Nexoos, especializada em empréstimos para pequenas e médias empresas.

Entre as propostas oferecidas pelas fintechs, estão dividir a parcela em duas vezes, reduzir o valor da parcela e dar uma carência para pagamento (um período maior para começar a pagar).

Vale destacar que, mesmo em condições atrativas, o risco de se descuidar e contrair dívidas que levam ao superendividamento é grande e nem sempre o empréstimo é a melhor saída para resolver o problema. Em qualquer situação, o tomador só deve pedir um empréstimo depois de planejar seu orçamento atual e futuro e ter certeza de que as parcelas caberão no bolso. É preciso pesquisar a melhor modalidade de empréstimo para cada um e comparar o Custo Efetivo Total cobrado pelas instituições financeiras.

Novas formas de atrair receita e clientes

Neste momento de crise, as fintechs de crédito também criam novas linhas de negócios para atrair mais dinheiro.

A Nexoos, por exemplo, está em busca de grandes empresas parceiras, que queiram financiar seus próprios fornecedores e clientes. Uma rede de shopping, por exemplo, que não quer que suas lojas quebrem, pode ter interesse em se tornar parceira da fintech e dar crédito aos lojistas. Nesse caso, a rede de shoppings tem dinheiro para emprestar, mas não é uma instituição financeira e não sabe fazer análise de risco de crédito.

"É uma forma da fintech unir partes interessadas e chegar no cliente final utilizando recurso privado", diz Daniel Gomes, CEO e sócio-fundador.

A Nexoos também vai ajudar pequenos e médios negócios a vender na internet e sobreviver na crise do coronavírus. A fintech vai disponibilizar estrutura financeira e site para empresas que não têm acesso a crédito, operação digital e suporte para pagamento on-line. Em troca, vai cobrar uma porcentagem de 15% sobre o que for vendido, caso a operação se concretize. É mais uma fonte de receita na crise.

Além de ganhar financeiramente, as fintechs de crédito também criam formas de atrair novos públicos tomadores de empréstimos. A Mutual, especializada em empréstimos entre pessoas físicas, lançou uma campanha de empréstimo com condições especiais para pequenos empreendedores, que normalmente não são a clientela foco da fintech.

Trabalhadores em situação de informalidade e pequenos empreendedores podem solicitar crédito, no valor máximo de R$ 1 mil, e pagar a primeira parcela do valor pedido somente 90 dias depois. A taxa de juros utilizada na operação será social, de apenas 1% ao mês.

“Não teremos lucro com esse novo serviço, nossa comissão foi zerada. Estamos abrindo a nossa plataforma, em caráter excepcional”, explica Victor Fernandes, diretor de marketing e cofundador da Mutual. Em parceria com a plataforma controladora de investimentos Kinvo, o bureau de crédito Boa Vista e outras empresas parceiras, a fintech pretende impactar 10 mil empreendedores com a ação.

“Ao contrário de somente aumentar juros e restringir o crédito, queremos dar empréstimos para pessoas mega impactadas pela crise”, diz Fernandes.

O jeito de atrair investidores pessoas físicas

Fintechs de empréstimos entre pessoas, cujo dinheiro para emprestar vem do bolso de pessoas físicas, também oferecem condições diferentes para atrair investidores que estão com o pé atrás em tempos de crise.

Para equilibrar a queda de 60% no capital disponível, a Ulend, especializada em empréstimo de pessoas para empresas, aumentou as taxas de juros para o empréstimo ficar mais atrativo para os investidores. A taxa de juros média subiu de 24% ao ano para 32% ao ano.

A fintech também aumentou o valor das garantias exigidas. Mais de 80% das operações de crédito disponibilizadas na plataforma possuem garantias reais, como aplicação financeira sob custódia da Ulend ou recebíveis, além de empréstimos com garantia de imóveis, que minimizam ou eliminam perdas em casos de inadimplência. Para um tomador que oferece um imóvel de R$ 800 mil como garantia, por exemplo, antes a fintech liberava um empréstimo de R$ 600 mil, e agora, de R$ 400 mil.

“Do lado dos investidores, isso é bom. Para os tomadores não é tão bom, mas dessa forma conseguimos fazer com que o volume de recursos disponíveis para emprestar caia menos. E em 90% dos casos, nossa taxa ainda assim é mais barata do que no banco para as empresas”, diz Gabriel Nascimento Sócio da Ulend. Foi o jeito que deu para tentar equilibrar as pontas e seguir em tempos tão difíceis.

https://www.sinfacsp.com.br/noticia/fintechs-de-credito-vivem-1a-crise-e-se-viram-nos-30-para-emprestar-a-juro-baixo-valor-invest