TJSP - PEDIDO FALÊNCIA - POSSIBILIDADE POR FACTORING

Apelação. Falência com base na impontualidade derivada do não pagamento de duplicatas mercantis, transferidas à empresa de fomento mercantil. Extinção do processo, sem julgamento de mérito, sob o argumento de que a falência não pode ser manejada com escopo de cobrança e exige pluralidade de credores. Legitimidade de empresa de factoring, na condição de endossatária de duplicatas pedir a falência da sacada/aceitante. Desnecessidade de pluralidade de credores para o pedido de quebra. O credor de empresário impontual tem a faculdade de eleger a via judicial adequada para satisfação de sua pretensão de cobrança: e x e c u ç ã o i n d i v i d u a l ou f a l ê n c i a. E x t i n ç ã o do processo, sem julgamento de mérito, afastada, o r d e n a n d o - s e o regular processamento da ação de f a l ê n c i a. Apelo p r o v i d o.

V i s t o .

1. Trata-se de apelação interposta por MACRO FACTORING E FOMENTO MERCANTIL LTDA., com fundamento no artigo 94, I, da Lei n° 11.101/2005, invocando sua condição de credora de duplicatas mercantis, regularmente aceitas pela devedora e sacadas por Orivaldo de Jesus Ferreira - Automotivo ME no valor total de R$ 14.907,00, correspondente a 42,5 salários-mínimos, que foram objeto de contrato de faturização. A cessão dos créditos foi notificada à apelada, que confirmou por carta ser a devedora dos títulos. Na condição de endossatária, por endosso próprio e translativo, não honradas as cártulas, realizou o protesto por falta de pagamento. Insurge-se contra a r. sentença de fls.50/52, da lavra da MM. Juíza Maria Goretti Beker Machado Ferreira Farias que, de ofíftio, indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo, sem resolução do mérito, com base no art. 267, VI, do Código de Processo Civil, por falta de interesse processual. Alega que requereu a falência da devedora com base nas duplicatas mercantis cujo valor supera 4 0 salários-mínimos, estando os títulos de crédito acompanhados de nota fiscal-fatura e dos comprovantes de remessa e recebimento de mercadorias além do instrumento de protesto. Verbera contra o entendimento da MM. Juíza que afirmou tratar-se de débito de pequeno valor e que há apenas um credor, o que evidenciaria o objetivo de usar a ação de falência como ação de cobrança, que é vedado. Invoca o art. 94, I, da Lei n° 11.101/2005, para afirmar que, demonstrada a impontualidade de títulos executivos com valor superior ao piso mínimo e devidamente protestados, impõe-se o decreto da quebra. Ressalta que a jurisprudência do TJSP é uníssona, no sentido de que não cabe ao Juiz a escolha da ação que a parte deve mover se o sistema concede a ela duas vias processuais distintas. Pede o provimento do recurso para ser determinado o regular processamento do pedido (fls. 55/59).
 
Recurso preparado (fls. 60/61), recebido (fls. 63) sem contrariedade, haja vista que a requerida não foi citada.

O Apelo foi distribuído para o eminente Desembargador ELCIO TRUJILO (fls. 75/76).

Por acórdão de fls. 80/83, a Egrégia Sétima Câmara de Direito Privado não conheceu do recurso, sob o fundamento de ser ele da competência desta Câmara Reservada â Falência e Recuperações.

O julgamento foi convertido em diligência para a apelante apresentar cópias dos AR\'s das intimações dos protestos, sendo cumprida às fls. 95/97.

Relatados.

2. Cumpre inicialmente, de ofício, afirmar a legitimidade da apelante para, com base nas duplicatas mercantis, regularmente aceitas, que lhe foram cedidas por contrato de fomento mercantil e transferida a titularidade por endosso translativo, promover qualquer ação, inclusive a de falência, na qualidade de credora da apelada.

O art. 14 da Lei* Uniforme de Genebra, aplicável às duplicatas em ra::ão do art. 25 da Lei n° 5.474/68 (Lei das Duplicatas) diz que o endosso transmite todos os direitos emergentes da letra.

Tendo a apelante, na condição de endossatária, promovido o protesto por falta de pagamento das duplicatas e, alcançando elas o piso mínimo, ou seja, valor superior a 4 0 saláriosmínimos na data do ajuizamento do pedido, exsurge com evidência a legitimidade e o interesse processual.

3. Esta Câmara Especializada tem diversos precedentes, no sentido de que o juiz não pode extinguir processo de falência, sob o argumento  de que ele não pode ser esgrimido com finalidade de cobrança, haja vista inexistir qualquer norma legal que proíba ao credor de título executivo de
responsabilidade de empresário, eleger se buscará seu crédito pela via da execução singular ou coletiva.

Neste sentido, o v. aresto de minha relatoria, proferido no julgamento da apelação n° 568.939.4/2, voto n° 14.519, provida por votação unânime para afastar extinção de processo de falência, sem julgamento de méritoJ1Confira-se:

"Por outro lado, é de rigor que também se examine a assertiva da douta decisão hostilizada, no sentido de que a ação de falência não pode ser utilizada como finalidade de cobrança, sob pena de desvirtuamento da pretensão falimentar.

Observado o respeito pelos que perfilham entendimento diverso, não vislumbro qualquer ilegalidade no manejo da ação de falência com o intuito de instaurar o concurso de credores e, ao mesmo tempo, com o escopo de cobrança.

RUBENS REQÜIÃO, com acuidade, tratou da questão, apresentando o seguinte escôlio:

"A falência como meio de cobrança. Ainda no que diz respeito à natureza jurídica da falência, ou de seu processo, estabeleceu-se acentuada divergência entre os autores nacionais, estendendo-se aos tribunais, sobre a questão de ser o processo de falência um meio judicial de cobrança dos débitos do devedor insolvente. Anotamos aqui essa divergência, em vista do cunho prático e informativo que desejamos imprimir aos nossos estudos.

"Uma corrente, que tem o beneplácito doutrinário de J. X. Carvalho de Mendonça, enuncia que "não é a falência o meio normal de obter o credor o cumprimento exato da obrigação ásJsumida pelo devedor, se este, por motivos atendíveis ou ainda por culpa, má-fé ou força maior, não a desempenha, nem se acha em condições de desempenhá-la, mas o remédio extraordinário, que institui o concurso de credores sobre o patrimônio realizável do devedor comum, manifestada que seja a impossibilidade de satisfazer pontualmente os seus compromissos." (Tratado de Direito
Comercial Brasileiro, vol. VII, n° 12).

"O Prof Otávio Mendes não se conforma com a lição do grande comercialista. Se a falência não é meio de cobrança, que é, então? —pergunta vivamente o professor paulista. Como afirma, "o credor que requer a falência de um seu devedor não se limita a praticar um ato assegurador de seu direito. Ele pretende mais; ele quer, pela liquidação de todo o patrimônio do devedor, obter senão o pagamento integral do que lhe é devido, pelo menos o maior pagamento que for possível conseguir daquela liquidação. Não vemos, portanto, como se possa negar à falência caráter de "meio de cobrança." (Falências e Concordatas, pág. 16).

"A lição de Otávio Mendes atraiu o apoio do Ministro Bento de Faria: "Sem ofensa aos doutos juristas - refere-se a Miranda Montenegro e Carvalho de Mendonça - não adoto essa opinião. E para justificar a divergência, basta repetir a pergunta do não menos ilustre Prof. Otávio Mendes — se a falência não é meio de cobrança, que é então? Execução coletiva? Mas o objeto de toda a execução é obter um pagamento; o de cobrar, portanto. Todo o credor que requer a falência do devedor pretende obter, pela liquidação de seu patrimônio, senão pagamento integral do que lhe é devido, pelo menos o maior pagamento que lhe for possível conseguir daquela liquidação. A falência, conseguintemente, é meio de cobrança." (Direito Comercial, vol. IV, l\' Parte; Falências e Concordatas, n° 14).

Conclui o mestre paranaense:

"Assim, sob o ponto de vista do credor, a falência, embora uma execução extraordinária e coletiva, constitui um meio de obter a cobrança de seu crédito." (Curso de Direito Falimentar, Ed. Saraiva, 16" edição, 1995, Io vol., pâg.29/30).

Vale a pena transcrever parte do parecer do eminente Procurador de Justiça, Dr. SÉRGIO SEIJI SHIMURA, exímio processual ista, quando trata especificamente da questão suscitada pela agravante no Agravo de Instrumento n° 494.605.4/5, do qual fui relator:
 
"De outro lado, quanto ao uso da via falimentar, cabe destacar que credor tem ao seu dispor tanto a ação de execução individual, como a de falência. Não há como lhe obstar tais canais, sob pena de se negar o direito de acesso à Justiça, à luz do art. 5o, XXXV, CF. Basta que atenda aos respectivos pressupostos específicos a cada veículo processual".

"A eleição desta via constitui-se em faculdade do credor. Na lição de FÁBIO KONDER COMPARATO h ação de falência com  base na  impontualidade é também uma forma judicial de cobrança de dívidas, cobrança que tomará a forma de execução singular, se o réu fizer depósito elisivo, ou redundará em execução coletiva, se a insolvência do devedor vier a ser a final reconhecida." (Falência - Legitimidade da Fazenda Pública para requerê-la, RT. 442/52) (vide Ap. 246.576.4/7-00, rei. Des. Luiz Antônio de Godoy.j. 24.09.2002)."

Em suma: o credor de título executivo contra empresário ou sociedade empresária tem duas vias para a satisfação de seu crédito: a execução singular ou a concursal, tendo ele a faculdade de optar pela via processual que entender mais adequada para a tutela de sua pretensão creditícia. O Poder Judiciário não pode impor ao credor a eleição de uma via determinada, quando o sistema positivo prevê mais de uma via processual para que o credor apresente o seu pedido de tutela jurisdicional."

No mesmo sentido, v. aresto relatado pelo eminente Des. ROMEU RICUPERO:

"Falência. Inexistência de qualquer elemento que caracterize abuso no instituto da ação falimentar supostamente utilizada como via substitutiva de uma ação de cobrança. Pluralidade de credores que não é pressuposto da falência. Irrelevância da existência a a credor único. Sentença  mantida. Agravo de instrumento não provido." (A.I. n° 561.185-4/0-00). Nessa mesma linha, REsp. 515.285-SC, Rei. Min. HUMBERTO GOMES DE  BARROS, DJ de 7.06.2004, p. 220).

4. Será, pois, provido o recurso para se afastar a extinção do processo, sem resolução do mérito, devendo ser expedido o mandado de citação.

DESEMBARGADOR MANOEL DE QUETEROZ PEREIRA CALÇAS
RELATOR!