Fomento

A Lei 12.810/13, a indústria de FIDC e o registro de direitos creditórios

A Lei 12.810, de 15 de maio de 2013, que completou nove anos de vigência, abriu um importante caminho para a modernização do arcabouço jurídico aplicável às infraestruturas dos mercados financeiro e de capitais ao fixar, em seus arts. 22 a 30, o marco legal das atividades de depósito centralizado, escrituração, custódia e registro de ativos financeiros e valores mobiliários.

Desde a sua edição, a lei permitiu a realização de diversas reformas regulatórias que conferiram segurança jurídica a operações realizadas e serviços prestados por infraestruturas dos mercado financeiro e de capitais que ocorriam sem a seu necessária previsão legal.

A primeira dessas reformas foi discutida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por meio da Audiência Pública SDM nº 6, de 2013, que precedeu as Instruções CVM nº 541, 542 e 543, todas editadas em dezembro de 2013, e que tratam respectivamente da prestação de serviços de depósito centralizado, custódia e escrituração de valores mobiliários. Embora tais normas tenham sido formalmente substituídas (pelas Resoluções CVM nº 31, 32 e 33, todas de 2021), o seu conteúdo não sofreu quaisquer modificações materiais.

O marco instituído pela Lei 12.810, de 2013, permitiu que a CVM estendesse o regime legal de depósito centralizado – que, até então, só existia verdadeiramente em relação às ações (como resultado do previsto no art. 41 da Lei nº 6.404, de 1976) – para todas as espécies de ativos financeiros e de valores mobiliários. Isso porque o art. 24 autorizou que fosse estabelecida a titularidade fiduciária de qualquer ativo financeiro ou valor mobiliário, em forma física ou eletrônica, para as entidades autorizadas a prestar serviços de depositários centrais pela CVM ou pelo Banco Central do Brasil (BCB).

Assim, embora muitos ativos já usassem o mesmo fluxo operacional das ações quando negociados em mercados organizados, foi somente por meio da Lei 12.810 que a titularidade fiduciária das centrais depositárias foi juridicamente reconhecida para esses ativos.

A legislação também esclareceu que a constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado deve ser exclusivamente realizada, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que esses ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito.

Essa previsão pôs fim a imensas discussões sobre a necessidade de registrar garantias sobre valores mobiliários e ativos financeiros também em cartórios para que fossem eficazes perante terceiros, reduzindo em muito os custos relacionados a esses gravames, diminuindo a insegurança de operações que tem como garantia esses títulos e, não menos importante, simplificando os fluxos operacionais necessários para a correta formalização dessas garantias.

Esses são só exemplos dos inúmeros aprimoramentos, desburocratizações e incremento do nível de proteção legal dos investidores promovidos pela Lei 12.810

A boa notícia é que esses avanços ainda não se esgotaram, em especial, no que diz respeito ao registro de ativos financeiros, cuja disciplina se concentra nos art. 26, 27 e 28 dessa lei. Isto porque, nos próximos meses, para quando se espera a aprovação pela CVM da versão final da nova regra referente ao regime jurídico dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), é possível vislumbrar mais um relevante – e bem-vindo – desdobramento da lei aqui homenageada.

Mais especificamente, se essa regra vier a ser aprovada conforme as minutas de resolução e anexos normativos colocadas em discussão pela CVM por meio da Audiência Pública SDM nº 8, de 2020, as entidades registradoras de ativos financeiros serão formal e definitivamente incorporadas à estrutura jurídica dos FIDC. Segundo a proposta normativa da CVM, os FIDC somente poderão adquirir direitos creditórios que tenham sido objeto de registro em entidade registradora autorizada ao exercício dessa atividade.

Por um lado, inclusive em linha com parte dos comentários submetidos à CVM no contexto da referida Audiência Pública, são legítimos e merecedores de debate os argumentos de alguns participantes do mercado que questionam a eficiência e até a viabilidade fática de, já neste momento, condicionar ao prévio registro todo e qualquer direito creditório que venha a ser adquirido pelos FIDC, independentemente de sua natureza. Grande parte desses argumentos se apoia no fato de que que as registradoras desses tipos de ativos têm absorvido gradativamente novos tipos de recebíveis e ainda não estão aptas a registrar e gravar a ampla gama de recebíveis que potencialmente podem compor a carteira de FIDC.

Assim, os desafios técnicos e operacionais, as potenciais arbitragens regulatórias com outros instrumentos de mercado e questões relativas à interoperabilidade dessas registradoras são alguns dos aspectos que, de fato, precisarão ser cuidadosamente sopesados pelo regulador para definir tanto a extensão, quanto o escalonamento de vigência dessa exigência. Obviamente, não é tarefa das mais fáceis e o mercado vive a expectativa de como a CVM vai sopesar os limites técnicos que a inovação ainda impõe com o desejo de conferir maior segurança e transparência para o produto.

Por outro lado, nem mesmo aqueles que sugeriram ajustes à minuta posta em discussão na citada Audiência Pública parecem discordar que o caminho que está sendo trilhado pela CVM é acertado. O registro, afinal, é um dos mecanismos mais eficazes conhecidos até este momento para conferir maior segurança e transparência a diversas modalidades de ativos financeiros. Em especial, o registro dos direitos creditórios tem o potencial de mitigar riscos inerentes a esses títulos, notadamente aqueles relacionados à sua titularidade, validade e existência de lastro, padronização, movimentações financeiras, conciliação e direcionamento de fluxos de pagamento.

Por esses motivos, o BCB tem alargado gradativamente a exigência de registro para os ativos financeiros sob sua jurisdição e o mercado tem usufruído dos efeitos positivos dessas mudanças.

Por exemplo, o registro das duplicatas mercantis e dos recebíveis de cartão de crédito tem aberto um importante e concorrido mercado de financiamento para comerciantes e prestadores de serviço. O fato de esses títulos estarem registrados numa entidade registradora, e não na empresa que presta os serviços de adquirência para esses comerciantes, permite que esses atores procurem fontes de financiamento mais baratas dando os recebíveis que geram como garantia – e isso apenas é possível porque atualmente esses títulos estão registrados em uma entidade registradora que é acessível a todo o conjunto de potenciais financiadores. Assim, mesmo com os desafios operacionais e custos de sua implantação, o registro das duplicadas e recebíveis de cartão de crédito tem gerado segurança, transparência  e, sobretudo, concorrência, o que potencialmente diminui o custo de crédito de milhões de empreendedores.

Essa segurança sobre a existência e titularidade, bem como as facilidades de controle e transferência dos recebíveis, ganha especial relevância na indústria de FIDC diante de um conhecido histórico de problemas gerados pela dificuldade de verificar lastro, controlar as cessões e fluxos financeiros. Esses problemas foram, muitas vezes, causados por esquemas fraudulentos facilitados pela manualidade do exercício dessas atividades, mas também por dificuldades efetivas de desempenhar essas funções no lápis ou no Excel, por assim dizer.

Em outras palavras, os FIDC adquirem uma ampla e variada gama de direitos creditórios que englobam desde recebíveis massificados de valor ínfimo até contratos com disposições muito específicas e individualizadas e podem envolver valores substanciais. Por terem naturezas e origens tão distintas, esses recebíveis têm mecanismos bastante diferentes entre si de serem criados, documentados, transferidos e cobrados.

Foi precisamente por conta dessas particularidades que o regime jurídico brasileiro aplicável aos FIDC, desde o seu início, colocou sobre o custodiante desse veículo o relevante ônus de receber e verificar a adequação da documentação comprobatória dos ativos integrantes da carteira dos FIDC. A regulamentação da CVM foi se tornando cada vez mais prescritiva e onerosa em relação aos custodiantes de FIDC para preencher lacunas e desestimular práticas irregulares na indústria. De fato, por meio de uma ampla reforma implementada em 2013, a CVM esclareceu suas expectativas sobre as obrigações das instituições custodiantes, estabelecendo procedimentos mais detalhados sobre as suas atividades.

Em um mundo sem registro e despadronizado, cada custodiante, para os efeitos regulatórios, ficou responsável por determinar quais documentos seriam suficientes para comprovar a existência de crédito e promover sua cobrança em relação à cada espécie de recebível admitido nos fundos para os quais prestava o serviço de custódia; por receber esses documentos; por verificá-los periodicamente; e por guardá-los.

Ocorre que, talvez pelo fato de se tratar de função muito distinta do que os custodiantes realizam em relação às ações e outros ativos financeiros que nascem de forma escritural e eletrônica – cuja custódia envolve controles de existência e fluxos financeiros eletrônicos e conciliações automatizadas–, muitas dessas instituições acabaram por terceirizar grande parte desse serviço, em alguns casos, em dissonância com o arcabouço jurídico, sem a adoção dos cuidados exigidos por esse movimento. Outras – e talvez as maiores e mais bem estruturadas  – simplesmente deixaram de prestar esse serviço ou, ao menos, deixaram de oferecer esse serviço para veículos de fora do seu conglomerado financeiro, concentrando suas atividades na custódia de FIDC próprios.

Relembrar esse histórico é importante porque condicionar a aquisição pelos FIDC a direitos creditórios submetidos a registro pode ser uma eficiente forma de calibrar, de um lado, os deveres que hoje recaem sobre os custodiantes e, de outro, a preocupação – mais que legítima – do regulador com a segurança e transparência desse produto. Essa questão é particularmente importante para o regulador diante da perspectiva de se confirmar a inédita possibilidade, já admitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) por meio da Resolução no 4.694, de 2018, e agora em vias de se concretizar pelas mãos da CVM nos termos da Audiência Pública SDM nº 8, de 2020, de esse veículo de securitização ser distribuído, mediante a adoção de salvaguardas adicionais, a investidores de varejo.

Nesse sentido, conforme minuta colocada em discussão na citada Audiência Pública, a CVM, em linhas gerais, propõe que remanesça com o custodiante as verificações de lastro atinentes aos direitos creditórios substituídos ou inadimplidos. Em relação aos demais créditos, desde que registrados, restaria ao custodiante apenas funções típicas relacionadas à prestação de serviços de custódia de valores mobiliários.

As propostas da CVM não apenas têm o potencial de trazer mais segurança, higidez e transparência aos FIDC em si e, consequentemente, aumentar a proteção dos cotistas desses veículos; mas também viabilizam que os ônus regulatórios ora imputados aos custodiantes sejam redimensionados, circunstância que, em certa medida, pode corrigir uma externalidade negativa da reforma de 2013 e, assim, fomentar o interesse de novas instituições em prestar esse serviço no mercado brasileiro, trazendo maior competição, potencial redução de custos e, enfim, ampliar fontes de crédito com menor custo para diferentes setores, objetivo que sempre está na lista de prioridade dos formuladores de políticas públicas.

Assim, sob diversos ângulos e por múltiplos benefícios, há diferentes motivos para se apoiar, ainda que em termos, a essência da proposta da CVM de se condicionar a aquisição pelos FIDC de direitos creditórios objeto de registro. E nenhum desses benefícios, como visto, teria sido possível sem as inovações trazidas pela Lei 12.810, de 15 de maio de 2013.

LUCIANA DIAS – Professora da FGV Direito (desde 2008) e sócia do L|Dias Advogados (desde 2016). Foi diretora da Comissão de Valores Mobiliários (2010 - 2015). Doutora (2014), mestre (2005) e bacharel (2000) pela USP. Mestre pela Universidade de Stanford (2005)

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-financeira/a-lei-12-810-13-a-industria-de-fidc-e-o-registro-de-direitos-creditorios-13062022