EMENTA: Falência - Pedido - Nota promissória - Operação de factoring - Iliquidez - O negócio de factoring é, normalmente, uma cessão de crédito sem garantia subsidiária do cedente - Admitindo-se que poderá o cedente opcional, voluntariamente, responder quanto à solvência do devedor, essa responsabilidade deverá ser assumida somente através de convenção (por escrito no contrato), respondendo, então, o cedente, pela idoneidade financeira do cedido (sacado devedor), limitada ao valor do crédito, com os respectivos juros (art. 297 do CC) - Aqui, além de o contrato de fomento mercantil não ter sido juntado e, com isso, não ter sido provada a cláusula de responsabilidade do faturizado, é certo que existe a alegação de cobrança de juros de 6% a 8% ao mês, o que, por si só, robustece a ausência de liquidez do título - Apelação não provida.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n9 400.556-4/8-00, da Comarca de DIADEMA, em que é apelante MARCAM FACTORING E FOMENTO MERCANTIL LTDA. sendo apelado ELASTIC PLAS ARTEFATOS DE BORRACHA LTDA.:
ACORDAM, em Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores SIDNEI BENETI (Presidente), BORIS KAUFFMANN.
São Paulo, 19 de outubro de 2005.
ROMEU RICUPERO
Relator
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO APELAÇÃO COM REVISÃO N.° 400.556.4/8-00 - VOTO N.° 4712
COMARCA DE DIADEMA
APELANTE (S): MARCAM FACTORING E FOMENTO MERCANTIL LTDA.
APELADO (S): ELASTIC PLAS ARTEFATOS DE BORRACHA LTDA.
VOTO N.° 4712
EMENTA: Falência - Pedido - Nota promissória - Operação de factoring - Iliquidez - O negócio de factoring é, normalmente, uma cessão de crédito sem garantia subsidiária do cedente - Admitindo-se que poderá o cedente opcional, voluntariamente, responder quanto à solvência do devedor, essa responsabilidade deverá ser assumida somente através de convenção (por escrito no contrato), respondendo, então, o cedente, pela idoneidade financeira do cedido (sacado devedor), limitada ao valor do crédito, com os respectivos juros (art. 297 do CC) - Aqui, além de o contrato de fomento mercantil não ter sido juntado e, com isso, não ter sido provada a cláusula de responsabilidade do faturizado, é certo que existe a alegação de cobrança de juros de 6% a 8% ao mês, o que, por si só, robustece a ausência de liquidez do título - Apelação não provida.
Trata-se de apelação interposta por Marcam
Factoring e Fomento Mercantil Ltda. (fls. 217/224) contra a r. sentença de fls. 205/207, cujo relatório adoto, que julgou extinto o pedido de falência que move a Elastic Pias Artefatos de Borracha Ltda., por carência da ação, nos termos do art. 267, ínc. VI, do CPC, condenando-a no pagamento de honorários advocaíícios de 10% sobre o valor dado à causa, atualizado.
A r. sentença fundamentou-se em que a inicial veio tão somente acompanhada de nota promissória, sem qualquer documento comprobatório da origem da dívida, bem como dos valores que a compõem, enfatizando que referida nota promissória está sendo discutida em ação declaratória de inexigibilidade, havendo que se comprovar a natureza da transação comercial pelas partes entabulada, se houve ou não o desconto das duplicatas ditas "frias", de que forma, seus valores, o que enseja düação probatória, através de ação própria, inviável pela via eleita.
A autora opôs embargos de declaração (fls. 210/211 e 213/214), rejeitados pela r. sentença de fls. 215.
A apelante alega que a nota promissória é título não causai, ou seja, não precisa ser originada por uma relação mercantil.
Justamente por ser o título em questão não causai, desnecessária a verificação das relações que ensejaram sua emissão. Ademais, na réplica, esclareceu que a emissão deveu-se à responsabilidade da apelada quanto ao inadimplemento de cártulas que foram transferidas à apelante por endosso da apelada, em virtude de sua irregularidade.
Diz, também que a suposta ação de inexigibilidade do título em questão não possui qualquer relação com o presente feito, posto que não há a coincidência entre as
partes das demandas (a autora da declaratoria seria outra que não a ré deste pedido). Não bastasse, a existência de efetiva questão prejudicial não ensejaria a extinção e sim a suspensão da ação (art. 265, IV, "a", do CPC).
Preparado (fís. 229/231) e recebido (fls. 233), o recurso, que é tempestivo, foi respondido (fls. 235/249).
É o relatório.
A requerente, que é uma empresa de factoring, alega que é credora da ré da quantia de R$ 18.605,29 (dezoito mil, seiscentos e cinco reais e vinte e nove centavos), representada por uma única nota promissória emitida em 23/01/2003 e vencida em 13/03/2003 (fls. 12), com protesto lavrado em 30/09/2003 (fls. 13).
Efetuado o depósito elisivo (cf. fls. 32), a requerida contestou (fls. 33/49), alegando: a) inépcia da inicial (o presente pedido faümentar está sendo utilizado como meio de cobrança de suposta dívida, em flagrante desvio de finalidade); b) prejudicialidade (cautelar de sustação de protesto, já julgada extinta, com apelação pendente - fls. 50/95, e ação principal de inexigibilidade do título, em fase de instrução); c) no mérito, disse que celebrou diversas operações de factoring com a requerente, que consistiam na venda de crédito decorrente de parte de seu faturamento, mediante o desconto antecipado das taxas e comissões exigidas pela requerente; alguns dos títulos descontados, não foram quitados pelo devedor principal e a requerente houve por bem preencher, "a posteriori" e levar a protesto, a nota promissória que estava assinada em branco pela requerida, exigida na ocasião dos descontos realizados, no exato valor dos títulos negociados e não pagos; a nota promissória é absolutamente inexigível, uma vez que a empresa de factoring assume o risco inerente à atividade comercial que desempenha (inadimplemento dos sacados); a exigência da garantia (nota promissória) acabou por configurar verdadeira operação de financiamento por meio de desconto de duplicatas, atividade que é exclusiva de instituições financeiras; ademais, foram cobrados juros que variam de 6% a 8% ao mês, de forma composta (capitalizados), superiores ao limite legal de 32% ao ano (fls. 96/149).
Em sua réplica (fls. 170/180), a autora afirmou que foram preenchidos os requisitos exigidos pelo Decreto-lei n.° 7.661/45 para a propositura da ação; negou a prejudicialidade, porque a outra ação é movida por empresa diferente, ou seja, Elastic S/A, e não a requerida, Elastic Pias; a promissória foi emitida por computador, o que impede a assinatura em branco e o seu preenchimento "a posteriori"; a existência do negócio de factoring não desnatura a relação cambial existente entre as partes; "as partes celebraram um negócio de factoring e estipularam que a ré, em consonância com normas legais do Direito Cambiado, responsabilizar-se-ia pela liquidação dos títulos vendidos, pelo que, em garantia de tal obrigação, foram emitidas notas promissórias, não havendo qualquer ilegalidade em tal disposição de vontade" (cf. item 34 - fls. 175); caracterizando-se o negócio de factoring como um contrato atípico e não existindo lei no Brasil exigindo determinada forma, nem lei de ordem pública condicionadora dos direitos das partes, forçoso concluir que obstáculo algum existe em se estabelecer a responsabilidade do endossante em um negócio de factoring, pela liquidação do crédito vendido à empresa de factoring (cf. item 38 - fls. 176); disse que a nota promissória destinava-se à quitação de duplicatas "frias" emitidas pela ré e endossadas para a autora (cf. inquérito policial de fls. 181/202).
Adveio, então, incontinenti, a r. sentença de fls. 205/207, na qual se disse que:
"No caso dos autos, a NP não só está sendo discutida em ação declaratória de inexigibilidade, o que por si só não obsta o ajuizamento da presente, como também não se demonstrou de plano a liquidez e certeza do título. Ao contrário, alegou-se, em réplica, estar fundamentada a NP em operação de factoring com base em "duplicatas frias" emitidas pela ré, questão essa investigada em sede de inquérito policial.
Em assim sendo, carecedor de ação é o autor. Há que se comprovar a natureza da transação comercial pelas partes entabulada, se houve ou não o desconto das duplicatas ditas "frias", de que forma, seus valores, o que enseja dilação probatória, através de ação própria, inviável pela via eleita".
Não cabe, aqui, uma monografia acerca do factoring, bastando, para começar, o conceito dado por FRAN MARTINS, ou seja, "o contrato de faturização ou factoring é aquele em que um comerciante cede a outro os créditos, na totalidade ou em parte, de suas vendas a terceiros, recebendo o primeiro do segundo o montante desses créditos, mediante o pagamento de uma remuneração" (cf. "Contratos e Obrigações Comerciais", 14a edição, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1996, n.° 417, p. 469).
Ao comentar a regulamentação do factoring no Brasil e a natureza do contrato, o emérito comercialista disserta:
"A introdução do factoring no Brasil é preconizada como um meio de atender às pequenas e médias empresas, na obtenção de capital de giro, sem as dificuldades geralmente observadas no desconto bancário, muitas vezes de difícil acesso aos "pequenos comerciantes".1 Em virtude de não haver, entre nós, uma regulamentação legal do contrato - como, aliás, acontece com muitos outros países - nos últimos tempos se tem discutido bastante 1 Fábio K. Comparato. "Factoring". in Revista de Direito Mercantil, Nova Série, n.° 6, 1972, pp. 59 e segs.sobre a natureza do factoring e o modo de ser o mesmo introduzido no país.
O Banco Central, como foi visto, defendeu a tese de que as operações de factoring - cessão de crédito sem garantia subsidiária do cedente - apresentam, "na maioria dos casos, características e particularidades daquelas privativas das instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central (Circular n.° 703, de 16/06/1982); por tal razão, foram proibidas no país as operações de factoring, até que o Conselho Monetário Nacional regulamentasse esse contrato.
Mantivemos orientação diversa da do Banco Central, pois não consideramos as empresas de faturização com características próprias das instituições financeiras de que trata o art. 17 da Lei n.° 4.595, de 31/12/1964 (Lei da Reforma Bancária), apesar desse inciso legal se referir a empresas que tenham por atividade principal "a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios". Se bem que as empresas de faturização também apliquem, como as instituições financeiras, recursos próprios, sempre entendemos, seguindo a lição de Gavalda e Stoufflet, que as empresas de faturização se distinguem das instituições financeiras porque estas não realizam operações especulativas e sim operações de crédito, enquanto as empresas de faturização realizam operações de risco" (cf. autor e obra citados, n.° 419-A, p. 472, negrito e sublinhado não são do original).
Depois de explanar que a dificuldade maior para a regulamentação legal do contrato de faturizaçao no Brasil se deve à regra do art. 2o da Lei n.° 5.474, de 18/07/1968 (Lei das Duplicatas), ou seja, "não será admitida qualquer outra espécie de título para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador", o mestre da Universidade Federal do Ceará conclui que, "sendo característica essencial do contrato de faturizaçao a isenção do faturizado da responsabilidade de pagar o crédito cedido caso o comprador das mercadorias não o faça - o que torna o contrato de factoring uma operação de risco, portanto especulativa, e não uma operação de crédito, como são as operações bancárias -, sendo a duplicata o único título válido para a cobrança das vendas a prazo (Lei n.° 5.474/68, art. 2o), o endosso sem garantia não soluciona o problema da isenção da responsabilidade do sacador do título (faturizado), a não ser que não fosse levada em conta aquela isenção que é da natureza do contrato" (cf. autor e obra citados, n.° 419-A, pp. 474-475).
O tema também é tratado por ANTÔNIO CARLOS DONINI, que admite a responsabilidade do cedentefaturizado:
"Antes mesmo da Circular 703 expedida pelo Bacen, em 16 de junho de 1982, induvidoso que a operação de factoring, em face do desconhecimento geral, confundia-se com a agiotagem e operação bancária.
As empresas de factoring, então, através de seus sindicatos e associações, na tentativa de demonstrar à sociedade e, principalmente às autoridades, a importante função social que exerciam junto às pequenas e médias empresas, procuraram salientar a prestação de serviços por elas desenvolvidas, para afastar, inegavelmente, a indesejada comparação com práticas de agiotagem e atos característicos de instituições financeiras.
E, nesse clima, apressou-se o factor também em assumir todos os riscos pela insolvência do devedor.
Essa sujeição das empresas de factoring em assumir toda a responsabilidade pelo risco do inadimplemento do título cedido, conforme veremos, está divorciada da legislação vigente de nosso país, como também dos principais mercados onde se pratica o factoring.
(...)
Conforme já alinhavado, a operação de fomento mercantil repousa numa cessão de crédito, em face de sua natureza contratual e não cambial, conquanto seja o título circulado por meio de endosso.
A cessão tem por objeto a transferência de crédito, sendo um contrato típico, ou seja, regulamentado por lei, embora inserido no contrato de fomento mercantil que é atípico misto, conforme já analisado neste trabalho.
A cessão de crédito possui regulamentação própria prevendo mecanismos para responsabilizar o cedente independente de sua vontade (obrigatória) e quando estipulado contratualmente (opcional), conforme já demonstrado.
Essa mesma cessão de crédito se aplica na operação de factoring, onde estabelece em relação à responsabilidade do cedente, em face da solvência do devedor, o seguinte:
Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor (art. 1.074 do 'CC de 1916' ou art. 296 do 'NOVO CC).
Comentando esse dispositivo, ensina Clóvis Beviláqua" que o cedente responde pela existência e pela legitimidade do crédito e não pelo adimplemento da obrigação por parte do devedor. Mas o mesmo dispositivo permite ao cedente que assuma, caso o desejar, tal responsabilidade, pois a expressão "salvo estipulação em contrário'" admite possa ele assegurar a solvência futura.
Temos, pois, que, além da garantia concernente à existência e legitimidade (verdade e subsistência) que é sempre obrigatória (art. 1.073 do CC de 1916 ou 295 do 'NOVO' CC), poderá o cedente opcional, voluntariamente, responder quanto à solvência do devedor. Essa responsabilidade deverá ser assumida somente através de convenção (por escrito no contrato) - frise-se -, respondendo, então, o cedente, pela idoneidade financeira do cedido : Código Civil Comentado. 1 Ia ed.. Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1956, vol. IV, p 189 (sacado devedor), limitados ao valor do crédito, com os respectivos juros (art. 1.075 do 'CC de 1916' ou art. 296 do 'NOVO CC')-
No silêncio, ou seja, se no contrato de fomento mercantil não for estipulado o contrário do que autoriza a lei (responsabilidade pela solvência do devedor), o cedentefaturizado não responderá pelo pagamento do devedor.
Destarte, força é convir que é possível seja o cedente-faturizado responsabilizado pela idoneidade financeira do cedido-sacado-devedor, quando expressamente convencionado" (cf. "Factoring", Rio de Janeiro, Editora Forense, 2002, Parte II, Direito de Regresso, ns. 3.1 e 3.2, pp. 107-109).
Como se vê, na melhor das hipóteses para a apelante, deveria esta trazer aos autos o contrato de fomento mercantil celebrado com a apelada e provar a existência de cláusula de responsabilidade do faturizado pelo inadimpíemento dos sacados.
Mesmo nessa hipótese, a responsabilidade do faturizado não poderia ir além do valor do crédito cedido e não pago pelos sacados, mais os juros, nos termos do art. 297 do atual Código Civil, ou seja, o cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros, mas tem de ressarcir-lhe as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança.
Aqui, além de o contrato de fomento mercantil não ter sido juntado e, com isso, não ter sido provada a cláusula de responsabilidade do faturizado, é certo que existe a alegação de cobrança de juros de 6% a 8% ao mês, o que, por si só, robustece a ausência de liquidez do título.
Por fim, este Tribunal, em precedentes semelhantes, tem encampado a solução agora acolhida:
"FALÊNCIA - Crédito originário em nota promissória - Factoring - Carência da ação - Admissibilidade - Inexistência de liquidez e certeza do título - Decisão mantida - Recurso não provido" (Apelação Cível n. 232.925-4 - Ribeirão Preto - 4a Câmara de Direito Privado - Relator: Munhoz Soares - 04.04.02 - V. U.).
"FALÊNCIA - Pedido com base em nota promissória - Indeferido - Possibilidade de indeferimento da inicial de pedido de falência - Empresa de factoring - Atividade comercial mista atípica - Necessidade de declinar a origem da cártuía e a exibir o contrato de fomento - Ausência de elementos probatórios ou explicativos e indicativos de ser a nota promissória título de liquidez e certeza - A faturizadora assume riscos inerentes aos negócios que realiza - A inicial não satisfaz os requisitos do artigo Io do Decreto-lei falencial - Recurso não provido" (Apelação Cível APELAÇÃO COM REVISÃO N.° 400.556.4/8-00 - VOTO N.° 4712 n. 224.582-4/3 - São Paulo - 8a Câmara de Direito Privado - Relator: Nivaldo Balzano - 18.02.02 - V. U.).
Isto posto e, considerando tudo o quanto mais consta dos autos, nego provimento à apelação.