FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS. DIREITO DE REGRESSO E FIANÇA - VIABILIDADE AQUISIÇÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO

RECURSO ESPECIAL Nº 1.726.161 - SP (2018/0041251-0)

RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO


RECORRENTE: MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITO CREDITORIOS

ADVOGADO : JOSE LUIS DIAS DA SILVA - SP119848

RECORRIDO : DEBORA ANDRADE LAPIQUE

ADVOGADOS : RAPHAEL GARÓFALO SILVEIRA - SP174784
MARILIA DE MORAES NEVES - SP315627
ANDRÉ EDUARDO BRAVO - PR061516

INTERES. : COMISSAO DE VALORES MOBILIARIOS - "AMICUS CURIAE"

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : CHRISTIAN TARIK PRINTES - SP316680

INTERES. : ANBIMA - ASSOCIACAO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DOS

MERCADOS FINANCEIRO E DE CAPITAIS - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICARDO ZAMARIOLA JUNIOR - SP224324
LUCIANO DE SOUZA GODOY - SP258957

INTERES. : ASSOCIACAO NACIONAL DOS PARTICIPANTES EM FUNDOS DE INVESTIMENTOS EM DIREITOS CREDITORIOS, MULTICEDENTES E MULTISSACADOS - (ANFIDC) - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICIERE DONIZETTI LUZZIA - SP086752
RAFAEL MEDEIROS MIMICA - SP207709

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL - IBDCIVIL - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : GUSTAVO JOSÉ MENDES TEPEDINO - RJ041245
EMENTA

RECURSO ESPECIAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS. MERCADO DE CAPITAIS. VALOR MOBILIÁRIO. DEFINIÇÃO LEGAL QUE SE AJUSTA À DINÂMICA DO MERCADO. SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS. CESSÃO DE CRÉDITO EMPREGADO COMO LASTRO NA EMISSÃO DE  ÍTULOS OU VALORES MOBILIÁRIOS. PACTUAÇÃO ACESSÓRIA DE FIANÇA. POSSIBILIDADE. CONFUSÃO ENTRE AS ATIVIDADES DESEMPENHADAS POR ESCRITÓRIOS DE FACTORING E PELOS FIDCs. DESCABIMENTO. CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO. VIABILIDADE.

1. Com a edição da MP n. 1.637/1998, convertida na Lei n. 10.198/2001, houve a introdução no ordenamento jurídico de conceituação próxima à do direito americano, estabelecendo que se constituem valores mobiliários os títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros. A definição de valor mobiliário se ajusta à dinâmica do mercado, pois abrange os negócios oferecidos ao público, em que o investidor aplica seus recursos na expectativa de obter lucro em empreendimento administrado pelo ofertante ou por terceiro.

2. Os Fundos de Investimento em Direito Creditório - FIDCs foram criados por deliberação do CMN, conforme Resolução n. 2.907/2001, que estabelece, no art. 1º, I, a autorização para a constituição e o funcionamento, nos termos da regulamentação a ser estabelecida pela CVM, de fundos de investimento destinados preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos representativos desses direitos, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro,
comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na referida regulamentação.

3. Portanto, o FIDC, de modo diverso das atividades desempenhadas pelos escritórios de factoring, opera no mercado financeiro (vertente mercado de capitais) mediante a securitização de recebíveis, por meio da qual determinado fluxo de caixa futuro é utilizado como lastro para a emissão de valores mobiliários colocados à disposição de investidores. Consoante a legislação e a normatização infralegal de regência, um FIDC pode adquirir direitos creditórios por meio de dois atos formais: o endosso, cuja disciplina depende do título de crédito adquirido, e a cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos arts. 286-298 do CC, pro soluto ou pro solvendo.

4. Foi apurado pelas instâncias ordinárias que trata-se de cessão de crédito pro solvendo em que a recorrida figura como fiadora (devedora solidária, nos moldes do art. 828 do CC) na cessão de crédito realizada pela sociedade empresária de que é sócia. O art. 296 do CC estabelece que, se houver pactuação, o cedente pode ser responsável ao cessionário pela solvência do devedor.

5. Recurso especial provido.
 
ACÓRDÃO
 
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira (Presidente) e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Sustentaram oralmente o Dr. ANDRÉ EDUARDO BRAVO, pela parte RECORRIDA: DEBORA ANDRADE LAPIQUE, e o Dr. JOSE LUIS DIAS DA SILVA, pela parte
RECORRENTE: MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS.

Brasília (DF), 06 de agosto de 2019(Data do Julgamento)
 
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.726.161 - SP (2018/0041251-0)

RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO


RECORRENTE : MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS

ADVOGADO : JOSE LUIS DIAS DA SILVA - SP119848

RECORRIDO : DEBORA ANDRADE LAPIQUE

ADVOGADOS : RAPHAEL GARÓFALO SILVEIRA - SP174784
MARILIA DE MORAES NEVES - SP315627
ANDRÉ EDUARDO BRAVO - PR061516

INTERES. : COMISSAO DE VALORES MOBILIARIOS - "AMICUS CURIAE"

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR -  "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : CHRISTIAN TARIK PRINTES - SP316680

INTERES. : ANBIMA - ASSOCIACAO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DOS MERCADOS FINANCEIRO E DE CAPITAIS - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICARDO ZAMARIOLA JUNIOR - SP224324
LUCIANO DE SOUZA GODOY - SP258957

INTERES. : ASSOCIACAO NACIONAL DOS PARTICIPANTES EM FUNDOS DE INVESTIMENTOS EM DIREITOS CREDITORIOS, MULTICEDENTES
E MULTISSACADOS - (ANFIDC) - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICIERE DONIZETTI LUZZIA - SP086752
RAFAEL MEDEIROS MIMICA - SP207709

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL - IBDCIVIL - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : GUSTAVO JOSÉ MENDES TEPEDINO - RJ041245

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

 
1. Débora Andrade Lapique opôs embargos à execução em face de Multi Recebíveis II Fundo de Investimento, aduzindo que foi executada com base no contrato de cessão de créditos da sociedade empresária L' Essence, na qual figura como sócia, buscando o recebimento de crédito no montante de R$ 99.634,52 (noventa e nove mil, seiscentos e trinta e quatro reais e cinquenta e dois centavos).

Afirma que a devedora principal L' Essence encontra-se em recuperação judicial, tendo sido suspensos todos os débitos, incluindo aquele objeto do litígio, e que, mesmo que seja superada essa tese, o valor executado foi novado - em vista da recuperação judicial - e a execução das garantias encontram-se suspensas, estando os devedores solidários igualmente exonerados do cumprimento das obrigações.

Pondera que a relação jurídica existente entre as partes tem origem em uma operação de cessão de títulos de crédito, sendo o regresso contra a devedora solidária ilegal e abusivo, pois o Fundo de Investimento já cobra considerando os riscos inerentes às atividades por ele desenvolvidas, não tendo direito a obter garantia fidejussória (aval) na operação de cessão dos recebíveis.

Assinala que, em caso idêntico, o Tribunal de origem perfilhou o entendimento de que o fomento mercantil é atividade de risco, ficando a faturizada isenta de qualquer responsabilidade pelo pagamento dos títulos adquiridos.

Aduz que, consoante disposto no art. 365 do CC, uma vez operada a novação com um dos devedores solidários - o que ocorreu com a homologação do Plano de
Recuperação Judicial da sociedade empresária coobrigada -, as garantias subsistem somente em relação à recuperanda, exonerando-se os demais devedores.

O Juízo da 12ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo julgou procedente o pedido formulado na inicial.

Interpôs o embargado apelação para o Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao recurso.

A decisão tem a seguinte ementa:

Execução por título extrajudicial - Embargos Procedência - Débito relativo a Contrato de Promessa de Cessão e Aquisição de Direitos de Crédito e Outras Avenças - Cobrança em face da devedora solidária - Inadmissibilidade - Direito de regresso - Incabível - Hipótese de transferência definitiva dos títulos - Recurso do embargado improvido.

Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.

Sobreveio recurso especial do embargado, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, sustentando divergência jurisprudencial e violação aos arts. 286, 295, 296, 297 e 298 do CC.

Alega que o voto divergente pontuou que o FIDC adquire, a título oneroso, os direitos creditórios do cedente, tornando-se dele titular, podendo, à luz do direito cambiário e do disposto no art. 296 do CC, exigir do cedente o crédito em caso de insolvência do devedor, se houver disposição contratual nesse sentido.

Sustenta que o outro voto divergente ponderou que a a operação não se confunde com factoring, nada havendo a afastar os efeitos e a validade da disposição prevista no contrato de cessão, e que a oposição de embargos à execução torna óbvia a desnecessidade de ser oferecida à fiadora a recompra.

Assegura que o acórdão recorrido não diferencia a atividade de factoring daquela de um fundo de investimento, regulamentada pela CVM, caracterizando, como alinhavado em voto vencido, securitização de recebíveis, mediante processo de transformação de um conjunto de créditos presentes e futuros em garantia ou investimento, que permite ao estruturador da operação solicitar garantias adicionais para absorção de riscos.

Obtempera que a decisão diverge do art. 286 do CC, o qual permite a estipulação da responsabilidade do cedente pela solvência do devedor, não havendo nenhuma disposição legal que vede o que foi estabelecido no contrato.

Declara que tem sua constituição, sua administração e seu funcionamento regulados pela Instrução Normativa da CVM n. 356/2001, e que a atividade que desempenha propicia uma alternativa ao financiamento bancário, proibitivamente oneroso às sociedades empresárias de pequeno e de médio porte.

Considera que a decisão recorrida enfraquece não apenas o crédito, mas a própria lei, e diverge do entendimento perfilhado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em caso similar, em que aplicou os arts. 286 a 298 do CC, notadamente o 296, que trata da cessão pro solvendo.

Expõe que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em caso também semelhante, a envolver cessão de crédito, decidiu que o art. 296 do CC admite a modalidade
pro solvendo e que nada pode obstar o direito de cobrar do cedente ou do devedor solidário caso haja amparo em cláusula contratual.

Em contrarrãzoes, afirma a recorrida que: a) o recorrente pretende o reexame de provas e interpretação contratual; b) as alegações são infundadas; c) o recurso não demonstra nenhuma afronta aos preceitos infraconstitucionais; d) não há pressuposto fático que permita ser reconhecida a alegada violação ao art. 296 do CC; e) o negócio desenvolvido pelo recorrente é factoring, sendo injusta a execução do cedente, pois os créditos foram adquiridos por quantia menor do que realmente valiam, como de praxe no mercado, caracterizando ultraje a pretensão de recebimento integral do crédito cedido.

O recurso especial foi admitido.

Em vista da relevância do tema e da constatação de que o recurso devolve nuance controvertida nova acerca de cessão de crédito para Fundo de Investimento em
Direito Creditório - ainda não detidamente abordada na jurisprudência do STJ -, acolhendo ponderação da recorrente, à luz do que preceitua o art. 138 do CPC, oportunizei a participação, na qualidade de amicus curiae, de entidades com representatividade adequada.

Dessarte, determinei fosse dada ciência, facultando-se-lhes manifestação, no prazo de quinze dias úteis (art. 138, Lei n. 13.105/2015), às seguintes entidades: Comissão de Valores Mobiliários - CVM, ao Instituto Brasileiro de Direito Empresarial IBRADEMP -, à Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais - ANBIMA, à Associação nacional dos Participantes em Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios Multicedentes e Multissacados - ANFIDC , ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, ao Instituto Brasileiro de Direito Civil - IBDCIVIL e ao Instituto Brasileiro de Atuária - IBA.

A autarquia federal Comissão de Valores Mobiliários - CVM, como amicus curiae, declarou in verbis:

Feitos esses esclarecimentos preliminares e tendo em vista a natureza da demanda, a SIN - Superintendência de Relações com Investidores Institucionais desta Autarquia foi instada a se manifestar, concluindo pela possibilidade de "um FIDC adquirir créditos com estipulação de responsabildiade do cedente pelo adimplemento, permanecendo hígida tal incumbência após a cessão, exceto se houver acordo em contrário das partes", nos termos do Memorando nº 3/2018-CVM/SIN/GIES (id: 271418454).

A análise fundou-se, precipuamente, nas normas exaradas pela CVM a respeito do tema, notadamente artigos 2º, XV e 40-A da Instrução CVM 356/2001 e art. 3º da Instrução CVM 489/2011.

[...]

A securitização de recebíveis, portanto, traduz-se em uma operação financeira em que o originador de determinados direitos e crédito promove sua cessão para terceiros, que poderá revestir-se da forma de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, ou de uma Sociedade de Propósito Específico, fornecendo lastro para emissão de títulos e valores mobiliários, os quais, por sua vez, serão disponibilizados para os investidores, com acesso à poupança popular.

Os recursos obtidos via captação pública serão revertidos ao cedente, de forma a liquidar a cessão promovida, resultando em uma antecipação de receitas para o credor originário do título e em uma diluição do risco entre os participantes da operação.

[...]

Em linha com a manifestação da área técnica desta CVM, pontua-se, ainda, que a Instrução CVM 489/2011, em seu art. 3º, passou a classificar as operações com direitos creditórios, para fins de registro contábil, em: (i) operações com aquisição substancial dos riscos e benefícios; ou (ii) operações sem aquisição substancial dos riscos e benefícios.

Interessa particulamente para o caso em testilha o disposto no art. 3º, § 2º, III, em que resta explicitado que devem ser classificadas como "operações em que o fundo não adquire substancialmente todos os riscos e benefícios de propriedade do direito creditório objeto da operação e que, como consequência, não ensejam a baixa do direito creditórios nos registros contábeis do cedente, tais como: (...) IV - quaisquer outros mecanismos, fora das condições normais de mercado, que visem a mitigar a exposição ao risco de mercado ou de crédito do fundo, tais como recompra, substituição ou permuta de direitos creditórios ou ainda aporte de
cotas subordinadas pelo cedente ou parte relacionada, de forma recorrente ou sistemática". Grifamos.

[...]

Face às razões aduzidas, bomo bem ressalta a SIN nos itens 7 e 8 do citado Memorando nº 3/2018-CVM/SIN/GIES, a decisão das instâncias ordinárias de limitar a coobrigação do cedente "pode implicar severos prejuízos à indústria de FIDC por: i) ignorar as normas da CVM que permitem claramente a coobrigação do cedente; ii) interferir indevidamente na autonomia privada das partes após o aperfeiçoamento da cessão, causando insegurança jurídica nos agentes do mercado, em especial sobre muitos fundos já constituídos e em operação, e que contaram de boa-fé com previsão autorizativa expressa da regulamentação da CM para a estruturação de seus produtos nessas condições; iii) impactar diretamente a precificação dos créditos hoje detidos por esses veículos, visto que ela é influenciada por quaisquer garantias existentes, inclusive eventual coobrigação do cedente; e iv) frustrar o investimento dos cotistas do FIDC, uma vez que a exclusão dessa coobrigação aumenta indevidamente a possibilidade de inadimplemento do crédito cedido", sendo certo que "a confirmação da mencionada tese para o mercado dos FIDCs evidencia relevante risco de esvaziamento desse veículo de securitização, por incrementar, sem justificativa razoável ou fundamentação econômica, o risco de inadimplemento dos créditos cedidos, alterando inclusive as características de cessões já realizadas de boa fé no passado sobre fundos já em operação, fato que poderia afrontar, a nosso ver e inclusive, o instituto do ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, do art. 5º, da Constituição Federal".

No mais representa inaceitável usurpação da discricionariedade técnica da CVM em matéria cuja regulação foi expressamente atribuída por lei à Autarquia, contrariando entendimento do próprio STJ, conforme acórdão da C. Segunda Turma do E. STJ, à luz do r. voto condutor da lavra da Exma. Ministra Eliana Calmon, no julgamento do Recurso Especial nº 1.105.993 - PR (2008/0261954-3), ressaltando que não cabe ao Poder Judiciário substituir um órgão administrativo técnico:

[...]

Por fim, ao limitar a coobrigação do cedente, exponencia o risco de inadimplemento dos créditos cedidos em operações de securitização, alterando as características de cessões realizadas de boa fé com fundamento das normas exaradas a respeito do tema pela CVM, contribuindo para a perda da confiabilidade e transparência do mercado no processo de securitização, na contramão, inclusive, das recomendações dos organismos internacionais a respeito do tema.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, como amicus curiae, assim opinou:

Dentro desse último escopo, o Idec atuou diversas vezes em juízo na defesa da tese de que investidores são consumidores e, portanto, aplica-se o CDC à relação de investimento com a administração realizada por bancos de Fundos de Investimento em Direitos Mobiliários.

[...]

Tal reconstrução da atuação do IDEC se faz importante pela semelhança entre as naturezas jurídicas dos Fundos de Investimento em discussão. Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios são, conforme discussão presente nos autos, uma comunhão de recursos, sem personalidade jurídica e constituída sob a forma de condomínio, com a finalidade de investir em direitos creditórios.

Assim como nos exemplos em que o IDEC atuou, a busca dos investidores neste tipo de fundo é proteger o poder de compra do dinheiro investido. Para alcançar tal finalidade, o fundo funciona sob os cuidados, segundo definições da Instrução Normativa CVM nº 555/2014, de:

i) um administrador, que é “pessoa jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários e

ii) um gestor, que é “pessoa natural ou jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários, contratada pelo administrador em nome do fundo para realizar a gestão profissional de sua carteira”;

iii) um intermediário, que é “instituição habilitada a atuar como integrante do sistema de distribuição, por conta própria e de terceiros, na negociação de valores mobiliários em mercados regulamentados de valores mobiliários”;

iv) um custodiante, que é “participante responsável por realizar a guarda dos ativos e valores mobiliários de titularidade do fundo de investimento”.

A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais - Anbima, como amicus curiae, ponderou:

16. O financiamento bancário é o modelo tradicional de captação de recursos. Nesse modelo, a instituição financeira atua como intermediária, (a) de um lado, captando recursos da poupança popular, principalmente por meio de depósitos remunerados; e (b) de outro, concedendo empréstimos e financiamentos:

[...]

17. No financiamento bancário, a instituição financeira assume integralmente o risco de crédito dos tomadores dos empréstimos e financiamentos. Esse risco, em geral, não é repassado aos poupadores. Assim, a instituição financeira assume a obrigação de devolver aos poupadores os recursos depositados devidamente remunerados, independentemente do pagamento dos empréstimos e financiamentos pelos tomadores.

18. O mercado de capitais surgiu como uma alternativa de desintermediação bancária, na qual os tomadores podem acessar a poupança popular, de forma direta, por meio da emissão de valores mobiliários.

19. Poupança popular é a parcela de recursos do público não direcionada ao consumo.

[...]

22. Os fundos de investimento, que são regulados e fiscalizados pela CVM, contribuem para auxiliar na alocação dos recursos oriundos da poupança popular.

23. Nem sempre os investidores têm interesse, tempo ou conhecimento suficiente para decidir em quais ativos alocarão suas economias. No entanto, quando adquirem cotas de um fundo de investimento, a decisão dessa alocação é transferida a um gestor profissional, regulado e fiscalizado pela CVM, que deve agir, sempre, no melhor interesse dos cotistas.

24. Um fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio e destinada à aplicação em ativos financeiros. 10 Um fundo não possui personalidade jurídica, devendo ser constituído e representado, em todos os seus atos, por uma instituição financeira devidamente autorizada pela CVM para tanto.

25. A instituição administradora é responsável por zelar pelos interesses dos cotistas, devendo contratar, em nome do fundo, prestador de serviços para realizar as atividades de gestão da carteira. Ao gestor cabe decidir, observadas as regras previstas no regulamento do fundo e as restrições da regulamentação aplicável, os ativos a serem adquiridos ou alienados pelo fundo.

[...]

29. Pode-se dizer que a securitização democratizou o acesso à poupança popular por meio do mercado de capitais e viabilizou a captação de recursos por micro, pequenas e médias empresas, além das empresas de grande porte.

30. No modelo de securitização, os cedentes podem antecipar recursos por meio da cessão de direitos de crédito originados no curso regular de seus negócios, cessão essa feita a um veículo de securitização, como um FIDC ou uma companhia securitizadora:

[...]

32. Pela ausência de intermediação por instituição financeira, dentre outros motivos, os custos de captação através do modelo de securitização são, em geral, reduzidos quando comparados aos de um financiamento bancário.

33. A securitização, portanto, contribui para a ampliação da oferta de crédito a empresas de todos os portes, na maioria das vezes, de forma mais barata do que o financiamento bancário, exercendo um importante papel no crescimento econômico do país.

[...]

37. A partir de 2015, como se verifica no gráfico abaixo, houve uma redução na oferta de crédito de quase R$300 bilhões, especificamente para micro, pequenas e médias empresas. Para as empresas de grande porte, no mesmo período, o saldo das operações de crédito se manteve constante:

[...]

38. Nesse contexto, para diversas empresas de menor porte, os veículos de securitização, como os FIDC, passaram a ser uma das únicas alternativas de crédito disponível.

IV.4 FIDC COMO VEÍCULO DE SECURITIZAÇÃO

39. Os FIDC são fundos de investimento destinados a operações de securitização. O estágio de desenvolvimento das normas aplicáveis e a sua enorme versatilidade fazem com que o FIDC, atualmente, seja considerado o principal veículo de securitização no mercado de capitais brasileiro.

[...]

43. Assim, hoje, o FIDC é amplamente regulado e fiscalizado não apenas pela CVM, mas também pela ANBIMA, no seu papel de autorreguladora do mercado de capitais.

[...]

O FIDC pode adquirir direitos creditórios originados de diversos setores da economia, como o financeiro, o comercial, o industrial, o de prestação de serviços, o imobiliário, infraestrutura, entre outros, e sob as mais variadas formas (duplicatas, cheques, notas promissórias, debêntures e quaisquer outros títulos e contratos  epresentativos de crédito).

[...]

49. Em junho de 2018, o patrimônio líquido total dos FIDC em funcionamento no Brasil era de cerca de R$100,3 bilhões. Como visto, há potencial para expansão do mercado de securitização no Brasil e, consequentemente, para o crescimento da indústria de FIDC. Para que isso seja possível, no entanto, é essencial que exista um ambiente de segurança jurídica e de respeito às regras aplicáveis aos FIDC.

[...]

52. Não há nada na legislação e na regulamentação aplicáveis ao FIDC que vede a coobrigação do respectivo cedente ou de terceiros a ele relacionados pelo adimplemento dos direitos creditórios cedidos.

53. Pelo contrário, as regras da CVM permitem expressamente a coobrigação do cedente e de qualquer terceiro, estabelecendo os requisitos que devem ser observados para tanto. Da mesma forma, o Código Civil deixa a critério das partes contratantes da cessão de crédito a estipulação de coobrigação do respectivo cedente.

54. Uma decisão no sentido de vedar a coobrigação do cedente ou de suas partes relacionadas em operações envolvendo o FIDC, portanto, violaria o princípio da autonomia da vontade das partes e geraria insegurança jurídica, não apenas na indústria de FIDC, mas também no segmento de securitização e no mercado de capitais como um todo.

[...]

57. A existência de garantias, de modo geral, ajuda a mitigar o risco de crédito relacionado ao investimento. Ademais, a coobrigação do cedente ou de suas partes relacionadas promove um alinhamento de interesses entre o cedente e os cotistas do FIDC, mesmo após a cessão dos direitos creditórios ao FIDC.

[...]

60. Da perspectiva dos cedentes, a provável consequência seria uma redução na oferta para aquisição de direitos creditórios pelos FIDC, bem como uma elevação das taxas de desconto praticadas, de modo a permitir o pagamento do prêmio de risco adicional exigido pelos investidores. Em outras palavras, uma série de empresas que atualmente têm o FIDC como fonte de recursos teria um acréscimo no custo desse capital, ou teria que buscar recursos em outros segmentos, como o bancário ou o de fomento mercantil.

[...]

66. Com base em informações coletadas pela ANBIMA em junho de 2018, referentes a 609 FIDC, nota-se que, em 112 deles, há previsão de coobrigação pelo adimplemento da totalidade dos direitos creditórios cedidos. Em outros 244 FIDC, há previsão de coobrigação parcial. Além disso, em 208 FIDC, há obrigação de recompra dos direitos creditórios pelos cedentes em determinadas condições. Assim, verifica-se a existência de coobrigação, total ou parcial, e/ou de obrigação de recompra em quase 63% dos FIDC analisados.

67. Quando da contratação das cessões de crédito por esses FIDC, as partes negociaram, em boa-fé e com base nas normas vigentes, os respectivos termos e condições, incluindo a eventual prestação de coobrigação pelos cedentes ou por suas partes relacionadas. A existência da coobrigação, inclusive, teria sido considerada na definição do preço pago pelos referidos FIDC aos cedentes.

68. Uma decisão que invalide a coobrigação livremente negociada entre os FIDC e os cedentes traria prejuízos aos FIDC e à coletividade de investidores que eles representam.

[...]

90. Uma decisão como a do Acórdão afeta de forma negativa, direta e imediata toda a indústria de FIDC, que hoje é composta por mais de R$100 bilhões. Da perspectiva da oferta de crédito, tal decisão reduz ou encarece as alternativas disponíveis para captação de recursos, principalmente por micro, pequenas e médias empresas. Da perspectiva dos investidores e da poupança popular, tal decisão pode gerar prejuízos diretos e imediatos a poupadores que têm seus investimentos alocados, direta ou indiretamente, em FIDC. Ainda, a insegurança jurídica que decorreria dessa decisão pode gerar danos ao segmento de securitização e ao mercado de capitais brasileiro, contribuindo para a sua retração e para o aumento do custo de captação de recursos por todas as empresas que acessam esse mercado.

A Associação Nacional dos Participantes em Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios Multicedentes e Multissacados - ANFIDC, como amicus curiae, fez estas considerações:

16. Em breve síntese, o FIDC funciona como um condomínio de investidores que unem seus montantes em prol de investimentos em comum, sendo que o mínimo de 50% desse capital deve ser aplicado em Direitos Creditórios.

[...]

20. Assim, o FIDC aplica em títulos de crédito criados a partir de contas a receber de uma ou mais empresas, um processo denominado securitização de recebíveis. Por meio desse processo, no que tange ao mercado de FIDCs, as empresas cedentes “empacotam” seus recebíveis na forma de títulos que podem ser vendidos ao mercado.

[...]

22. A composição desses direitos creditórios pode resultar em diferentes combinações de risco e liquidez, pois os recebíveis podem ser a performar, isto é, que resultam de contrato futuro de entrega de produtos ou prestação de serviços, ou performados, aqueles em que a entrega do produto ou prestação de serviços já estão consumadas. 

23. Além disso, os recebíveis também podem ser revolventes – entrega ou prestação de serviços que exige uma reposição, por exemplo, financiamento de bens duráveis – ou estáticos – respondem pelo financiamento de projetos de longo prazo.

[...]

25. Não apenas, para que não exista dúvida acerca do risco associado a tais recebíveis, as cotas do fundo são devidamente classificadas por agências de classificação de riscos em funcionamento no país para que os investidores sejam devidamente informados.

26. A avaliação das cotas do FIDC deverá ocorrer, no mínimo, mensalmente, tal qual estabelecido no regulamento do Fundo, e deverá observar o valor de mercado dos ativos do FIDC, utilizando critérios passíveis de verificação.

27. Além disso, a metodologia deverá considerar aspectos inerentes aos próprios direitos creditórios, tais como a qualidade de seus devedores e garantidores e as características específicas das operações originadoras (cf. art. 14 da Instrução CVM nº 356/2001).

28. Sendo assim, percebe-se que o investidor que aportar capital nesse tipo de investimento, assim o fará tendo a exata dimensão de qual é o risco que possui.

As regras emanadas pela CVM primam pela transparência com o mercado como um todo.

[...]

39. Os fundos de investimento, de uma maneira geral, apresentam algumas figuras típicas que também são reguladas pela CVM. São elas: o administrador, o cotista, o custodiante e o distribuidor.

40. O administrador é o responsável pela prática de todos os atos necessários à administração do fundo, bem como pelo exercício de direitos inerentes aos ativos que o integram. O administrador deve, necessariamente, ser pessoa jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteira de títulos e valores mobiliários.

41. Segundo a Instrução CVM nº 356/2001, o a constituição do fundo deverá ser deliberada por seu administrador, que, no mesmo ato, deve aprovar, também, o inteiro teor do seu regulamento. Além disso, é ele quem contrata auditor independente, custodiante e agência classificadora de risco, dados que devem ser repassados para a CVM para a concessão do registro do fundo, entre outras responsabilidades.

42. O administrador deve ser um banco múltiplo, banco comercial, Caixa Econômica Federal, banco de investimento, sociedade de crédito, financiamento e investimento, por Corretora de Títulos e Valores Mobiliários ou uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários.

43. O cotista, por sua vez, é “o titular de uma fração ideal da significação econômica do patrimônio do fundo, denominada cota” 10 . O cotista não possui o uso e gozo direto dos bens que compõem a carteira do fundo, nem tem poder direto de administração. Entretanto, a vontade dos cotistas, manifestada em assembleias gerais é soberana, desde que exercida nos limites da lei e do regulamento do fundo.

44. O custodiante, a seu turno, tem seus deveres e obrigações definidas no regulamento e contrato de custódia. A Instrução CVM nº 356/2001 o define como “pessoa jurídica credenciada na CVM para o exercício da atividade de prestador de serviço de custódia fungível” 11 . É o custodiante que se responsabiliza pela liquidação financeira das operações realizadas com os ativos sob sua custódia, chegando a CVM a imputar a ele função de fiscalizar parcialmente os serviços do administrador ou lhe outorgar o poder de não aceitar ordens que não estejam diretamente vinculadas com a administração da carteira do fundo, entre outros determinados no artigo 38 da Instrução acima citada.

[...]

48. Um fundo pode adquirir direitos creditórios por meio: (i) de cessão civil de crédito, pelo que seguiria o quanto disposto nos artigos 286 e seguintes do Código Civil, e (ii) por meio de endosso, típico do regime cambiário.

49. Nos termos do artigo 287 do Código Civil, a cessão de crédito, via de regra, abrange todos os acessórios 13 . No mesmo sentido está o art. 2º, II, da Instrução CVM nº 356/2001:

Art. 2º Para efeito do disposto nesta instrução, considera-se:

II – cessão de direitos creditórios: a transferência pelo cedente, credor originário, ou não, de seus direitos creditórios para o FIDC, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional;

50. Assim é que o inciso XV do referido artigo 2º da Instrução, ao conceituar a coobrigação, abre a possibilidade de se adquirir um crédito com compromisso de adimplemento pelo cedente ou por terceiros:

XV – coobrigação: é a obrigação contratual ou qualquer outra forma de retenção substancial dos riscos de crédito do ativo adquirido pelo fundo assumida pelo cedente ou terceiro, em que os riscos de exposição à variação do fluxo de caixa do ativo permaneçam com o cedente ou terceiro.

[...]

55. Em outras palavras: o cedente e eventuais garantidores são conhecedores das exatas condições pactuadas com o Fundo e utilizam de sua autonomia privada para entabular tais negociações, vez que, conforme salientou o próprio E. TJSP, trata-se de contrato empresarial, o que pressupõe, de lado a lado, uma análise e assunção dos riscos envolvidos.

56. Tanto é verdade que apesar da cessão de crédito, se há obrigação de recompra dos títulos cedidos, o cedente e, por consequência, eventuais garantidores da obrigação, não podem baixar tais obrigações de seus registros contábeis.

57. Além disso, a cessão de crédito é regulada pelo Código Civil que estabelece claramente eu seu artigo 296 que, salvo disposição em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor:

[...]

59. Ainda que se adentrasse no regime cambiário e os títulos fossem adquiridos por endosso, estar-se-ia diante da possibilidade de responsabilização do cedente pela inadimplência dos devedores originais.

60. A Lei Uniforme de Genebra estatui em seu artigo 15 que, salvo cláusula em contrário, a regra é que o endossante é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra:

[...]

61. Sendo assim, ainda que o FIDC adquirisse título por endosso, nos termos da legislação aplicável, o endossante permaneceria responsável pelo pagamento do título. E caso houvesse cláusula dispondo em contrário, não restariam dúvidas de que as partes utilizaram sua mais ampla autonomia privada para dispor sobre tal assunto.

62. Se o raciocínio aqui é dessa forma, o paralelo é o mesmo para a cessão de crédito: havendo cláusula dispondo que o cedente garante a solvência do devedor original, a postura correta, diante da possibilidade que a própria lei atribui, é a de respeitar a vontade que dirigiu as partes em seu negócio, vez que tipicamente empresarial.

[...]

72. Ora, o FIDC é um instrumento democrático que proporcionou a empresas financeiras e não financeiras, de pequeno e médio porte, acesso a investidores qualificados e profissionais do mercado de capitais, configurando-se uma alternativa de captação de crédito para as empresas que não podiam contar com outra forma de capitalização tradicional, tal qual os empréstimos bancários.

73. Caso uma empresa já esteja com seu balanço comprometido com dívidas bancárias, ou mesmo que tivesse um alto número de recebíveis a longo prazo, mas que fosse necessária capitalização imediata para arcar com dívidas presentes e prosseguir com sua atividade, uma das saídas seria ceder seus recebíveis a um FIDC. Por sua vez, o FIDC fica responsável pela captação de recursos junto a investidores, possibilitando, consequentemente, o financiamento das atividades empresariais.

74. O FIDC, então, avalia tais recebíveis, estuda o mercado em que o cedente está inserido, bem como os devedores originais de cada direito creditório para ofertar ao cedente um valor pelo crédito.

75. Evidentemente que tal valor contará com um deságio, pois o fundo repassará no mesmo ato um valor ao cedente por créditos que serão pagos futuramente. A remuneração dos investidores é baseada nesse sistema de deságio: a diferença entre o valor que foi pago pelos devedores e quanto o fundo pagou pelos direitos creditórios.

76. Para avaliar o deságio que será pago ao cedente, o fundo avalia, entre outros fatores, a saúde financeira do devedor original, a saúde financeira de eventuais garantidores da obrigação e, além disso, se o próprio cedente garantirá a solvência da obrigação em caso de inadimplência. A própria Uqbar descreve tal processo:

[...]

79. Com a diminuição desse risco em razão da garantia pessoal do cedente, não há dúvidas de que mais empresas conseguiriam se capitalizar no mercado e ultrapassar períodos de crise econômica com um balanço patrimonial mais saudável, um menor passivo de curto, ou mesmo, de longo prazo, dando mais possibilidade para o desenvolvimento econômico do país como um todo.

80. Não existindo essa garantia, os FIDCs certamente incorreriam em maiores custos de transação, o que, evidentemente, impactaria negativamente o financiamento empresarial.

81. Primeiramente, esse risco adicional seria repassado ao mercado, que já poderia sofrer com a perda de interesse de diversos investidores, pois o risco atrelado aos FIDCs aumentariam consideravelmente.

82. Ainda, a majoração desses custos para averiguação da origem dos créditos e saúde financeira do cedente, devedor e garantidores, seriam repassados ao mercado. Quer-se dizer: o mercado teria um ativo de maior custo com menor certeza de retorno. A consequência não seria que não um maior desinteresse de investidores e, consequentemente, uma retração da oferta de financiamento das empresas. A equação está, em grande parte, atrelada ao aumento do risco e majoração de custos, que já são consideráveis.

83. Caso essa possibilidade seja retirada por meio de decisão do Poder Judiciário, não é preciso dizer muito para se concluir que a retração da atividade econômica consistiria em: (i) diminuição considerável do número de FIDCs no Brasil; (ii) menos empresas teriam capacidade de acessar crédito por meio de FIDCs; (iii) o motivo pelo qual o FIDC foi criado – financiamento de empresas e retorno aos investidores – seria totalmente desnaturado; (iv) possível aumento da inadimplência das empresas, especialmente em situações de macro crise econômica, na medida em que, praticamente só lhes restaria o financiamento bancário, por vezes a um custo muito elevado e que grande parte delas não tem acesso.

O Instituto Brasileiro de Direito Civil - IBDCIVIL, representado pelos eminentes juristas Gustavo Tepedino e Ana Frazão, como amicus curiae, sopesou:

4. Preliminarmente, ressalta-se que o FIDC, regulamentado pela Instrução CVM nº. 356/2001 (“ICVM 356”), 2 constitui tipo de fundo de investimentos estruturado (ou seja, regido por instrução própria, para além das normas gerais dispostas na Instrução CVM nº. 555/2014).

5. O FIDC, nos termos do art. 2º, III, da supracitada ICVM 356, 3 configura-se como comunhão de recursos reunidos por seus quotistas, destinados à aplicação preponderante em “direitos creditórios”.

6. Trata-se, então, de veículo que confere liquidez aos cedentes de direitos creditórios, ao imediatamente lhes disponibilizar valores em troca de créditos com data de vencimento futura.

7. É esta funcionalidade do instituto que o aproxima da atividade de fomento comercial (ou factoring), que também possibilita a formação de capital de giro mediante a cessão de créditos.

8. O FIDC se diferencia das empresas de factoring, porém, na medida em que não fornece ao cessionário os serviços de gestão de créditos e cobranças que com frequência são oferecidos pelas faturizadoras, restringindo-se à aquisição (com deságio) de créditos como forma de aplicação financeira dos recursos aportados pelos seus quotistas.

9. Observa-se, portanto, que outra importante diferença é que, ao contrário dos faturizadores, o FIDC promove a efetiva securitização dos direitos creditórios adquiridos, considerando que estes passam a integrar seu patrimônio – e o qual, por sua vez, é representado por suas quotas, que poderão circular no mercado de capitais.

10. Tais quotas consubstanciariam, ainda, ativos com precificação mais precisa e associados a maior segurança jurídica que os direitos e títulos de crédito adquiridos, assegurado pelas normas de compliance próprias aos fundos de investimento (como, no caso dos FIDCs, a obrigatória avaliação trimestral da carteira por agência de rating).

11. Note-se que, inexistindo até o momento disposição legal que a preveja, a atividade de factoring é promovida mediante contrato atípico, originado na autonomia privada das partes e consagrado nos usos e costumes do mercado, usualmente combinando elementos da cessão de crédito e da prestação de serviços, sendo esta última inerente às hipóteses em que a cessão ocorrer com garantia de solvência.

[...]

13. Normalmente, em tais arranjos contratuais, o risco do inadimplemento do crédito cedido corresponde ao ágio percebido pelo cessionário.

14. Por outro ângulo, o fato de o cessionário assumir este risco e os custos de cobrança, afastando-os do cedente, igualmente justificaria que este recebesse menos que o valor integral do crédito.

15. No que diz respeito à delimitação do risco alocado, a cessão de crédito como forma de transmissão das obrigações prevista no vigente Código Civil, pode assumir duas espécies:

i. a cessão de crédito pro soluto, na qual o cedente responde somente pela existência do crédito; e

ii. a cessão de crédito pro solvendo, na qual as partes podem convencionar que o cedente garanta ao cessionário a solvência do devedor.

[...]

17. De outra parte, como visto, o próprio legislador estabeleceu a possibilidade de as partes pactuarem a responsabilidade do cedente pela solvência do devedor (CC, art. 296). Além das configurações expressamente contempladas pelo legislador quanto à distribuição dos riscos da cessão entre cedente e cessionário, cumpre observar que o princípio da autonomia privada desempenha importante função no direito contratual, permitindo às partes a celebração de ajustes atípicos.

18. Com efeito, é lícito às partes, no direito brasileiro, a concepção de modelo contratual não preestabelecido pelo legislador, com o objetivo de autorregulamentar os respectivos interesses da forma mais adequada ao escopo econômico que prentedem alcançar. Na medida em que o contrato constitui instrumento essencialmente voltado às situações jurídicas patrimoniais, mostra-se proeminente o papel da autonomia privada, observados os interesses sociais subjacentes ao contrato e a boa-fé objetiva.

19. Desse modo, como corolário da autonomia privada, faculta-se às partes estipular garantias e termos adicionais não previstos pelo legislador na regulamentação de determinados modelos contratuais. Notadamente no âmbito da cessão de crédito, as partes poderão prever garantia mais ampla que as garantias de solvência e de existência do crédito, estabelecendo, por exemplo, garantia de adimplemento por parte do cedente.

20. A princípio, portanto, não haveria óbice à previsão contratual que imputa ao cedente a responsabilidade pelo adimplemento do crédito cedido, garantindo ao cessionário a possibilidade de acionar o cedente na hipótese de inadimplemento do devedor originário. Tal configuração da cessão de crédito, ao fornecer maior segurança ao cessionário na aquisição do crédito, proporciona cenário propício à celebração de cessões de crédito, com potencial para o desenvolvimento de um mercado que, em última análise, permite aos titulares de direitos creditórios obter, quando necessário, liquidez a partir dos créditos que possuem.

[...]

c) Os FIDCs e a atividade de aquisição de créditos. A previsão contratual expressa como requisito para a possibilidade de cobrança do crédito em face do cedente.

[...]

26. Igualmente, o art. 2º, XI, daquela Instrução conceitua “coobrigação” como “a obrigação contratual ou qualquer outra forma de retenção substancial dos riscos de crédito do ativo adquirido pelo fundo assumida pelo cedente ou terceiro, em que os riscos de exposição à variação do fluxo de caixa do ativo permaneçam com o cedente ou terceiro”.

27. Como se percebe, a ICVM 356 indica a possibilidade de que nas cessões de crédito contratadas pelo FIDC se mantenha o risco de inadimplemento com o cedente mediante instituição de garantia de adimplemento.

[...]

33. Tal ajuste, embora não contemplado expressamente na legislação brasileira, parece configurar-se como instrumento legítimo de distribuição de riscos no contrato, sem comprometer o risco inerente do cessionário quanto à recuperação do crédito adquirido.

34. Isso porque o cessionário, embora tenha a possibilidade de acionar o cedente para a cobrança do crédito inadimplido pelo devedor cedido, permanece submetido ao risco de perda do ativo que adquiriu, tendo em vista que também o cedente pode se tornar insolvente. Ademais, o tempo e os custos dispendidos para a cobrança do crédito pelo cessionário compõem variável que igualmente integra a equação contratual, configurando-se como risco do cessionário independentemente da constituição da garantia de inadimplemento.

[...]

36. Em definitivo, a possibilidade de o cessionário buscar a satisfação do crédito cedido em face do cedente dependerá, invariavelmente, de previsão contratual expressa que estabeleça a garantia de adimplemento, devendo-se verificar, ainda, se a responsabilidade do cedente, na hipótese, foi expressamente prevista como responsabilidade solidária, vez que, nos termos do art. 265 do Código Civil, “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

[...]

43. No direito francês, há previsão análoga à dos FIDC’s, os “fundos mútuos de titularização” (fonds commun de titrisation) que, em conjunto com a sociedades de titularização” (société de titrisation), integram os organismos de titularização previstos na Ordonnance nº. 2008-556.

44. Nesse sentido, referida norma alterou, entre outros pontos, o Código Monetário e Financeiro francês, passando a prever em seu art. L. 214-43 (§ 8º) que tais veículos poderão “para realizar seu objeto, (...) sob as condições dispostas em seus regulamentos ou atos constitutivos receber qualquer tipo de garantia ou colateral”.

[...]

46. Na Espanha, há previsão análoga aos FIDCs na forma dos fundos de securitização (fondos de titulazación), estabelecidos pelos artigos 15 e seguintes da Ley nº. 5/2015. Ainda que esta lei não compreenda previsão a respeito do direito de regresso perante o cedente ou extensão da garantia outorgada por este, seu art. 16, ‘1’, ‘a’ c/c ‘2’, prevê que podem ser incorporados ao patrimônio do fundo quaisquer “direitos de crédito que figurem no ativo do cedente”, adquiridos “por qualquer modo admitido em direito”, a sugerir sua possibilidade.

[...]

50. A partir do exame das disposições normativas nos países supracitados, infere-se que, em regra, o legislador alienígena não veda a constituição de garantia pessoal do cedente pelo adimplemento do crédito cedido. Ademais, é possível notar que os veículos análogos ao FIDC teriam a função precípua de secutirizar direitos creditórios, havendo, portanto, expressiva preocupação com a segurança e higidez dos créditos objeto de cessão.

[...]

O Eg. TJSP teria (corretamente, em princípio) identificado a similaridade entre ambas atividades e aplicado a mesma ratio. Todavia, como se fundamentou ao longo desta manifestação, a priori não existiria impedimento legal para que a responsabilidade pelo adimplemento seja contratualmente alocada contra o cedente ou faturizado.

52. Por fim, o IBDCivil, em sua condição de amicus curiae, opina favoravelmente ao direito dos FIDCs buscarem tutela jurisdicional para efetivar previsão de responsabilidade do cedente de direitos creditórios pelo adimplemento, respeitando-se as demais imposições legais.

O Ministério Público Federal assim se manifestou:

Nesse contexto, impõe-se reconhecer que a alteração do que decidido pelo tribunal de origem implicaria inadequada reapreciação do suporte fático-contratual constante dos autos, atraindo a incidência dos óbices previstos nos enunciados n.º 5 e n.º 7 da súmula do STJ.

Em superveniente petição, requer a recorrida sejam também convidados a participar na qualidade de amicus curiae o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - Carf (fls. 996-1.019). Em embargos de declaração, opostos às fls. 1.205-1.206, reitera a recorrida o mencionado pedido.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.726.161 - SP (2018/0041251-0)

RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO


RECORRENTE : MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS

ADVOGADO : JOSE LUIS DIAS DA SILVA - SP119848

RECORRIDO : DEBORA ANDRADE LAPIQUE

ADVOGADOS : RAPHAEL GARÓFALO SILVEIRA - SP174784
MARILIA DE MORAES NEVES - SP315627
ANDRÉ EDUARDO BRAVO - PR061516

INTERES. : COMISSAO DE VALORES MOBILIARIOS - "AMICUS CURIAE"

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : CHRISTIAN TARIK PRINTES - SP316680

INTERES. : ANBIMA - ASSOCIACAO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DOS MERCADOS FINANCEIRO E DE CAPITAIS - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICARDO ZAMARIOLA JUNIOR - SP224324
LUCIANO DE SOUZA GODOY - SP258957

INTERES. : ASSOCIACAO NACIONAL DOS PARTICIPANTES EM FUNDOS DE INVESTIMENTOS EM DIREITOS CREDITORIOS, MULTICEDENTES E MULTISSACADOS - (ANFIDC) - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICIERE DONIZETTI LUZZIA - SP086752
RAFAEL MEDEIROS MIMICA - SP207709

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL - IBDCIVIL - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : GUSTAVO JOSÉ MENDES TEPEDINO - RJ041245
 
EMENTA

RECURSO ESPECIAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS. MERCADO DE CAPITAIS. VALOR MOBILIÁRIO. DEFINIÇÃO LEGAL QUE SE AJUSTA À DINÂMICA DO MERCADO. SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS. CESSÃO DE CRÉDITO EMPREGADO COMO LASTRO NA EMISSÃO DE TÍTULOS OU VALORES MOBILIÁRIOS. PACTUAÇÃO ACESSÓRIA DE FIANÇA. POSSIBILIDADE. CONFUSÃO ENTRE AS ATIVIDADES DESEMPENHADAS POR ESCRITÓRIOS DE FACTORING E PELOS FIDCs. DESCABIMENTO. CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO. VIABILIDADE.

1. Com a edição da MP n. 1.637/1998, convertida na Lei n. 10.198/2001, houve a introdução no ordenamento jurídico de conceituação próxima à do direito americano, estabelecendo que se constituem valores mobiliário os títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros. A definição de valor mobiliário se ajusta à dinâmica do mercado, pois abrange os negócios oferecidos ao público, em que o investidor aplica seus recursos na expectativa de obter lucro em empreendimento administrado pelo ofertante ou por terceiro.

2. Os Fundos de Investimento em Direito Creditório - FIDCs foram criados por deliberação do CMN, conforme Resolução n. 2.907/2001, que estabelece, no art. 1º, I, a autorização para a constituição e o funcionamento, nos termos da regulamentação a ser estabelecida pela CVM, de fundos de investimento destinados preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos representativos desses direitos, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro,
comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na referida regulamentação.

3. Portanto, o FIDC, de modo diverso das atividades desempenhadas pelos escritórios de factoring, opera no mercado financeiro (vertente mercado de capitais) mediante a securitização de recebíveis, por meio da qual determinado fluxo de caixa futuro é utilizado como lastro para a emissão de valores mobiliários colocados à disposição de investidores. Consoante a legislação e a normatização infralegal de regência, um FIDC pode adquirir direitos creditórios por meio de dois atos formais: o endosso, cuja disciplina depende do título de crédito adquirido, e a cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos arts. 286-298 do CC, pro soluto ou pro solvendo.

4. Foi apurado pelas instâncias ordinárias que trata-se de cessão de  crédito pro solvendo em que a recorrida figura como fiadora (devedora solidária, nos moldes do art. 828 do CC) na cessão de crédito realizada pela sociedade empresária de que é sócia. O art. 296 do CC estabelece que, se houver pactuação, o cedente pode ser responsável ao cessionário pela solvência do devedor.

5. Recurso especial provido.
 
VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

 
2. Em relação ao pleito de adiamento para manifestação de outros colaboradores, é bem de ver que o "amicus curiae é um colaborador da Justiça que, embora possa deter algum interesse no desfecho da demanda, não se vincula processualmente ao resultado do seu julgamento. É que sua participação no processo ocorre e se justifica não como defensor de interesses próprios, mas como agente habilitado a agregar subsídios que possam contribuir para a qualificação da decisão a ser tomada pelo Tribunal. A presença de amicus curiae no processo se dá, portanto, em benefício da jurisdição, não configurando, consequentemente, um direito subjetivo processual" nem mesmo do interessado (ADI n. 3.460 ED, Relato: Ministro TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 12/2/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-47 DIVULG 11-3-2015, PUBLIC. 12-3-2015).

No âmbito desta Corte, também vale o mesmo raciocínio:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM FACE DO ACÓRDÃO DE RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE INGRESSO NO FEITO NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE, DEPOIS D PAUTADO O JULGAMENTO DO RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. INVIABILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS POR ENTIDADE QUE NÃO FOI ADMITIDA NOS AUTOS COMO AMICUS CURIAE. AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE. RECURSO NÃO CONHECIDO.

1. O relatório do acórdão recorrido, após transcrever todos os arrazoados daquelas entidades admitidas como amicus curiae, observou que a ora embargante peticionou a destempo, apenas depois que o recurso já estava pautado para julgamento. Com efeito, a admissão do ingresso extemporâneo violaria o devido processo legal, surpreendendo partes, Ministério Público e amici curiae - a participação do amicus curiae é desejável para aprimorar o salutar debate acerca da tese afetada, e não para ensejar tumulto processual.

2. "O amicus curiae é um colaborador da Justiça que, embora possa deter algum interesse no desfecho da demanda, não se vincula processualmente ao resultado do seu julgamento. É que sua participação no processo ocorre e se justifica, não como defensor de interesses próprios, mas como agente habilitado a agregar subsídios que possam contribuir para a qualificação da decisão a ser tomada pelo Tribunal. A presença de amicus curiae no processo se dá, portanto, em benefício da jurisdição, não configurando, consequentemente, um direito subjetivo processual do interessado". (ADI 3460 ED, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 12/02/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-047 DIVULG 11-03-2015 PUBLIC 12-03-2015)

3. Por um lado, a ora embargante, que se manifestou nos autos extemporaneamente, não trouxe em seu arrazoado argumentação relevante nova, e sustentou a mesma tese defendida por 2 das 3 entidades que ostentam a qualidade de amicus curiae. Por outro lado, não há direito subjetivo a ingresso no feito como amicus curiae, dependendo a admissão do exame ponderado caso a caso, inclusive para, v.g., assegurar um certo equilíbrio no debate a
envolver a tese afetada.


4. Embargos de declaração não conhecidos. (EDcl no REspn. 1.483.930/DF, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/04/2017, DJe 3/5/2017)

No caso, à luz da própria causa de pedir dos embargos à execução e das decisões prolatadas pelas instâncias ordinárias, segundo entendo, não há pertinência temática entre o tema controvertido e as atribuições dos Órgãos Públicos que a recorrida pretende sejam convidados a participar como amicus curiae.

Como visto, diversas entidades com inequívoca representatividade adequada manifestaram-se nos autos na qualidade de amici curiae, incluindo a própria autarquia fiscalizadora do mercado de capitais, trazendo fartos e satisfatórios subsídios.

Bem assim o art. 138 do novo CPC deixa claro que o Relator poderá, por decisão irrecorrível, solicitar ou admitir a participação daquele que detém representatividade adequada, razão pela qual indefiro o pedido formulado e, por conseguinte, julgo prejudicado os embargos de declaração opostos pela peticionária.

3. Iniciando o exame do recurso especial, observo que a principal questão controvertida consiste em saber se é hígida, em regular cessão de crédito tendo por cessionário Fundo de Investimento em Direitos Creditórios - FIDC, a previsão contratual de garantia fidejussória (fiança), ou se há vedação a essa avença acessória.

Para melhor compreensão da controvérsia, julgo conveniente anotar que a embargante, recorrida, na exordial dos embargos do devedor, ponderou:

Os presentes embargos são opostos em face da execução ajuizada pela Embargada fundada no contrato de cessão de créditos da sociedade empresária L' Essence, sendo que a Embargante Débora - atua no grupo empresarial como sócia - foi incluída na lide na condição de devedor solidária (avalista).

Sustenta a Embargada que a obrigação não se encontra adimplida e busca o recebimento de crédito no montante de R$ 99.634,52 [...].

O valor acima indicado supostamente é de responsabilidade da devedora principal L' Essence, tendo em vista os possíveis vícios existentes nos títulos  cedidos à Embargada.

[...]

Em uma operação de cessão de títulos de crédito o comerciante cede à empresa especializada os créditos, esta paga á vista pelos títulos, sendo a sua contraprestação o recebimento pela operação.


[...]

Logo, o fundo de investimento em direitos creditórios (no caso a Embargada), tem o direito de receber pelas operações, mas não lhe é facultado obter garantia ilegal da empresa cedente dos títulos. Em outras palavras, o cessionário (in casu a Embargada) não tem direito de regresso contra o cliente (in casu os Embargantes) que avalizam a cessão dos recebíveis.

E isto acontece porquanto a transferência dos títulos é definitiva. sob o lastro de compra e venda de bem mobiliário, exonerando-se assim o cedente pela satisfação do crédito.

Nesse cenário, a Embargada, na qualdiade de fundo de investimentos em direitos creditórios, cobra pela operação em comento, já considerando os riscos do negócio inerentes à atividade por ele desenvolvida, sendo-lhe vedado exigir dupla garantia do cliente (in casu os avais), sob pena de descaracterizar o instituto.

[...]

Portanto, o que se verifica é que o regresso alardeado na inicial da ação de execução é inconcebível, haja vista que a garantia de aval foi emitida como se a operação realizada fosse o recebimento de título em operação bancparia de desconto, atividade exclusiva das instituições financeiras, nos termos da Lei n. 4.595/1964.


Assim, considerando que a Embargada é um fundo de investimentos em direitos creditórios, o direito de regresso de forma a afastar ou minimizar os riscos da operação lhe é vedado.

Por outro lado, a sentença anotou:

A controvérsia nuclear da liça atine à responsabilidade da embargante pela solvência dos direitos creditórios adquiridos pelo embargado, cuja solução encontra-se nos contratos juntados a fls. 264/269, na natureza jurídica do contrato e no entendimento jurisprudencial.

De proêmio, da autonomia privada dos litigantes extrai-se que: "cláusula 4" - os fiadores, na qualidade de principais pagadores do cedente e com ele, solidariamente responsáveis pela existência, certeza, liquidez, exigibilidade, conteúdo, exatidão, veracidade, legitimidade e correta formalização dos direitos de crédito elegíveis que comporão a carteira do fundo, vem como pelo fiel e integral cumprimento de todos os termos e condições deste contrato, incluindo débitos comerciais e contratuais em geral, multas, perdas e danos, correção monetária, juros, custas e despesas judiciais, honorários de advogado e demais cominações de direito, com expressa renúncia ao disposto nos artigos 821 e 827 do Código Civil Brasileiro, que também responderão pelas obrigações futuras que o cedente venha a incorrer como resultado da condução de suas atividades." (fls. 264, destaque adicionado).

E mais: "Cláusula 13° - sem prejuízo das demais obrigações assumidas nos termos deste contrato, o cedente expressamente obriga-se a: (..) c) praticar todos os atos que estiverem ao seu alcance para que os sacados devedores dos direitos de crédito elegíveis honrem as obrigações relacionadas com os direitos de crédito elegíveis, cedidos ao fundo." (fls. 266, destaque adicionado).

[...]

Operada a interpretação declarativa das referidas disposições contratuais, entende-se que a responsabilidade do fiador foi equiparada à responsabilidade do devedor principal (cedente), porquanto ocupam solidariamente a mesma posição jurídica.

[...]

Deveras, consoante assentado em situações parelhas:

"Direito civil e processual civil. Fomento mercantil. Factoring. Responsabilidade do ó g ir o cedente. 1.- Na linha dos últimos precedentes desta Corte o faturizado não pode ser demandado o óN regressivamente pelo pagamento da dívida. 2.- Agravo regimental a que se nega provimento" o.0 2 (STJ, 3ª Turma: Agravo Regimental no Recurso Especial n° 1.305.454/SP)

[...]

Segundo pondera a jurisprudência, o direito de regresso é vedado por duplo motivo: a) a transferência operada é definitiva, uma vez feita sob o lastro da compra e venda, exonerando o cedente e seu garantidos; e b) o risco assumido pelo cessionário é inerente à atividade por ele desenvolvida, ressalva a hipótese de ajustes diversos no contrato - o que não se verifica na situação em apreço.

[...]

Isso porque tal desnatura o contrato celebrado, que possui por essência (repiso) o risco assumido pela empresa cessionária. Entendimento reverso conduziria à conclusão de que a cedente (e seu fiador) exercem atividade privativa de instituição financeira, o que é expressamente vedado pelo ordenamento jurídico, in verbis:
"Comercial - 'Factoring' - Atividade não abrangida pelo Sistema Financeiro Nacional [...].

O acórdão recorrido, por seu turno, dispôs:

Irresignado, apela o embargado, sustentando ser legítima a cobrança em tela em face da apelada, ora fiadora, tendo em vista que os títulos cedidos pela empresa L'Essence não foram pagos, havendo disposição expressa no contrato impondo tal responsabilidade., Alega, ainda, que o recorrente é um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios e não urna Factoring, tendo estruturas distintas e com natureza jurídica diversa,- que possibilitam o direito de regresso contra cedente e fiador.

[...]

Segundo se extrai dos autos, a empresa L'Essence celebrou com a empresa MULTIRECEBÍVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS (fls. 262/269), em 02.05.2011, Contrato de Promessa de Cessão e Aquisição de Direitos de Crédito e Outras Avenças, negociando créditos de titularidade do cedente para o Fundo, oriundos de operações industriais, comerciais e de prestação de serviços.

Ocorre que a obrigação assumida não foi adimplida e com a ausência do pagamento da dívida confessada, qual seja R$ 99.634,52, foi proposta a ação de execução em face da empresa L'Essence e sua responsável solidária.

A responsável solidária Débora Andrade Lapique, opôs, então, os presentes embargos à execução, afirmando, em síntese, a nulidade da execução, visto que, o valor exequendo foi novado e a execução das garantias encontra-se suspensa, além disso, o fundo de investimento em direitos creditórios não tem direito de regresso contra o cedente e o fiador, visto que, a transferência dos títulos é definitiva, exonerando-se o cedente pela satisfação do crédito.

Estes embargos restaram julgados procedentes pelo MM° Juiz da Causa. No presente apelo, o embargado invoca em seu favor o parágrafo primeiro da cláusula 13' da cessão de crédito, que também prevê a obrigação do cedente e fiadores a recomprar do Fundo os direitos creditórios negociados, sobrevindo a constatação de vícios ou quais outras exceções na origem destes direito, ou em caso de inadimplemento do sacado.

[...]

Também por isso, em nada socorre o apelante invocar em seu favor o art. 296 do Código Civil, que prevê que, "salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor".

[...]

Ademais, ainda que assim não fosse e mesmo considerando-se que o apelante não pode ser considerado como empresa de factoring, como afirma, por terem naturezas distintas, isto não implicaria em que pudesse responsabilizar o cedente e os fiadores pela solvência dos títulos cedidos, conforme é vedado à referida empresa, porquanto cuida-se, também, de risco inerente á atividade que o recorrente exerce, tal como se reconhece em relação à citada empresa.

[...]

Ressalte-se que no caso vertente nada foi alegado e muito menos demonstrado pelo apelante no sentido de estar promovendo a execução em tela em decorrência da invalidade dos títulos cedidos, relacionados na inicial de referida ação. Ao contrário, veio a afirmar unicamente que a embargante é responsável pelo inadimplemento dos títulos e isso basta para ensejar a presente cobrança (fls. 386).


Os dois votos vencidos pontuaram, respectivamente:

De início, a execução vem embasada em "contrato de promessa de cessão e aquisição de direitos de crédito e outras avenças", no qual a apeladá/executada figura na qualidade de¡ fiadora e principal pagadora, conforme disposição expressa da cláusula 48'do instrumento.

O exequente (FIDC), adquire, a título oneroso, os direitos creditórios do cedente, tornando-se deles titular (CC, art. 286), podendo, com amparo no art. 296 do CC e no direito cambiário, exigir do cedente a responsabilidade do cedente em caso de insolvência do devedor, desde que haja expressa estipulação contratual nesse sentido.

No caso presente, a embargante/apelada assumiu a obrigação de responder perante o embargado/apelante: não só pelo risco da existência dos créditos, como pela inadimplência dos devedores - cedidos.

E essa obrigação vem claramente estipulada na cláusula 13, § primeiro, que dispõe: "Concluída a operação e sobrevindo a constatação de vícios ou de quaisquer outras exceções na origem dos direitos creditórios negociados, ou em caso de inadimplemento do sacado, devedor, obrigam-se o CEDENTE e os FIADORES, a recompra-los do FUNDO, pelo valor de face dos direitos creditórios negociados, acrescidos de multa de 2% (dois por cento) e permanência mensal de 3% (três por cento) sobre o valor do referido título de crédito, além de juros moratórios, tudo conforme autorizam os artigos 389 ao 392 e 394 a 396 do Código Civil."

Não se trata aqui de obrigação de meio, conforme sustentou o magistrado de primeiro grau e confirmado pelo d. Relator sorteado, porque aqui, na verdade, se trata de securitização de recebíveis [...].

[...]

Assim, não prospera a alegação da embargante de que não pode ser responsabilizada pelo não pagamento dos títulos cedidos, pois figura expressamente na qualidade de fiadora e principal pagadora, e, portanto, corresponsável pelo pagamento de todos os direitos de crédito cedidos decorrentes do contrato de cessão.

Pelo exposto, dava provimento ao recurso para julgar improcedentes os embargos, invertido o ônus da sucumbência.


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De um modo geral, a operação de securitização de recebíveis, conquanto se assemelhe não se confunde necessariamente com a faturização.

Nesse sentido, então, nada há a infirmar os efeitos e a validade da previsão expressa no instrumento da cessão acerca da responsabilidade do cedente pela solvência do devedor, nos termos do artigo 296 do Código Civil.

Reforce-se, a exemplo do que fez o douto voto divergente, que o C. Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado no sentido e afastar a nulidade de cláusulas de responsabilização do cedente, mesmo nas operações de faturização, conforme se verifica, por exemplo, no seguinte julgado:

[...]

Com a devida vênia, não colhe, também, a alegação de que o exercício da garantia não observou o quanto previsto na cláusula em questão, já que a não recompra se afigurou inequívoca até mesmo em razão da oposição dos embargos á execução.


Tendo em vista o apurado e conforme incontroverso nos autos, a embargante, ora recorrida, figura como fiadora (garante solidariamente com a sociedade empresária cedente de que é sócia) no contrato de cessão de crédito firmado com o FIDC exequente, tendo as instâncias ordinárias afirmado, sem mencionar nenhuma disposição legal que amparasse esse entendimento, que é vedada disposição contratual prevendo garantia à operação, por ser situação análoga ao factoring.

4. Consoante o disposto no art. 3º da Lei n. 6.385/1976, compete ao Conselho Monetário Nacional definir a política a ser observada na organização e no funcionamento do mercado de valores mobiliários e fixar a orientação geral a ser observada pela CVM no exercício de suas atribuições. O art. 4º, I, do mesmo Diploma, com a redação conferida pela Lei n. 10.303/2001, estabelece que o CMN e a CVM estimularão a formação de poupanças e sua aplicação em valores mobiliários.

O mercado financeiro, que abarca o de capitais, tem relevância econômica inquestionável, pois enseja a captação de poupança dos agentes que possuem disponibilidade de recursos, em busca de rentabilidade mediante investimentos e liquidez, beneficiando aqueles que, por sua vez, objetivam utilizar esse capital em prazos satisfatórios, despendendo o menor valor possível. Se cada agente que necessitasse de recursos fosse isoladamente buscar um que pudesse lhe fornecer o necessário, além de ser praticamente impossível conciliar interesses e disponibilidade, isso geraria, em regra, um enorme custo de transação (CARVALHO, Mário Tavernard Martins de. Regime jurídico dos fundos de investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 23-25)

De fato, um mercado de capitais desenvolvido e eficiente é imprescindível para o fomento das atividades produtivas, porquanto a formação da poupança pela simples redução do consumo não promove necessariamente o crescimento da economia.

Em suma, o mercado de capitais, por meio de intermediários, viabiliza que esses recursos (poupança popular), mediante instrumentos financeiros adequados ao financiamento de atividades produtivas, sejam direcionados aos agentes que necessitam de capital de investimento (ASSAF NETO, Alexandre. Mercado financeiro. 9ª ed. São Paulo: Altas, 2009, p. 6).

A definição de valor mobiliário da lei brasileira inspirou-se inicialmente no direito francês, visto que a Lei n. 6.385/1976, sem estabelecer conceituação, remetia aos títulos emitidos por sociedades anônimas. Com a edição da MP n. 1.637/1998, convertida na Lei n. 10.198/2001, houve a introdução no ordenamento jurídico de conceituação próxima à do direito americano, ao estabelecer que se constituem valores mobiliários os títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Dessarte, "com a inclusão dos títulos e contratos de investimento coletivo, a definição de valor mobiliário se ajusta à dinâmica do mercado, onde vicejam os frutos da ampla imaginação criadora dos empresários financeiros. Com a introdução do conceito na definição, evitam-se futuras alterações casuísticas da legislação para incluir no elenco cada espécie de valor mobiliário surgida, pois a definição agora compreende todos os negócios oferecidos ao público, em que o investidor aplica seus recursos na expectativa de obter lucro em empreendimento controlado pelo ofertante ou por terceiro" (LOBO, Carlos Augusto da Silveira. WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas essenciais: mercado de capitais. Vol. VIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 113-121).

Carlos Augusto da Silveira Lobo pontua que a doutrina "também renuncia à formulação de um conceito abstrato de valor mobiliário, talvez impossível, dado o seu caráter instrumental e a mobilidade das fronteiras do mercado, que tem por função delimitar". Acresce, ainda, que a definição dos documentos admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários é questão de política legislativa, que se fundamenta mais em juízos de conveniência do que em conceitos (LOBO, Carlos Augusto da Silveira. WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas essenciais: mercado de capitais. Vol. VIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 113-121).

5. De outra parte, os Fundos de Investimento, com suas complexas estruturas, têm origem remota nos investment trusts, tendo por traço característico a administração profissional de patrimônio por pessoa autorizada a fazê-lo em benefício de terceiros que objetivam a aplicação de poupança de forma mais eficiente.

No Brasil, o Banco Central, em cumprimento à deliberação do CMN, editou a Resolução n. 145/1970, criando o Fundo Mútuo de Investimento, com estrutura análoga à atual, reconhecendo desde então a sua estrutura condominial (propriedade dos cotistas) e a inscrição própria no cadastro de contribuintes da Receita Federal.

Os FIDCs foram criados por deliberação do CMN, em sessão realizada em 29 de novembro 2001, conforme Resolução n. 2.907/2001, que estabelece, no art. 1º, I, a autorização para a constituição e o funcionamento, nos termos da regulamentação a ser estabelecida pela CVM, no prazo máximo de 15 dias, de fundos de investimento em direitos creditórios, destinados preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos representativos desses direitos, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na referida regulamentação. Também ficou estabelecida, no art. 2º, I, a possibilidade de aplicação de recursos no fundo apenas por investidores qualificados, consoant regulamentação editada pela CVM.

A título de oportuno registro, mais recentemente, em 29/10/2018, o Conselho Monetário Nacional (CMN) alterou a mencionada Resolução n. 2.907/2001 a fim de permitir maior liberdade de atuação da CVM para editar normas específicas sobre os FIDCs, de modo a, por exemplo, contemplar a possibilidade de oferta de cotas ao investidores não qualificados e a exclusão de valores de investimentos mínimos.

O art. 1º da Lei n. 10.198/2001 dispõe que constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou os contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros. E o parágrafo 3º, V, estabelece que compete à Comissão de Valores Mobiliários expedir normas para a execução do disposto nesse artigo, podendo estabelecer padrões de cláusulas e condições específicas para o exercício das atividades no âmbito desse mercado. Já o art. 2º, IX, da Lei n. 6.385/1976, com a redação conferida pela Lei n. 10.303/2001, no mesmo diapasão, determina que são valores mobiliários, quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Com efeito, a CVM editou a Instrução n. 356/2001, que estabelece no art. 2º, III, que o FIDC é uma comunhão de recursos que destina parcela preponderante do respectivo patrimônio líquido para a aplicação em direitos creditórios. E os incisos V e VI esclarecem que o Fundo, seja na modalidade aberta ou fechada, constitui condomínio.

Deveras, embora exista ainda acesa controvérsia - com correntes estabelecendo ser efetivamente condomínio, comunidade de bens não condominiais, expectativa de condomínio, forma societária mais simples e sociedade não personificada -, a doutrina amplamente majoritária propugna a natureza de condomínio bem peculiar, sui generis, constituindo patrimônio afetado à finalidade específica, sem personalidade, com capacidade. Confira-se a doutrina especializada:

Arnoldo Wald [...] acertadamente defende:

Quer se cogite de um condomínio especialíssimo ou sui generis, de uma sociedade sem personalidade jurídica [...] ou de uma forma de trust já adaptado e consagrado pelo direito brasileiro, a designação e a semãntica são secundárias, pois o importante é a capacidade substantiva e adjetiva do Fundo para adquirir e transmitir direitos, atuar em juízo e praticar todos os atos da vida comercial, embora só possa exercer sua atividade por intermédio de seu gestor. Não se trata de
contrato de comissão, pois os bens não são adquiridos em nome do gesto e por conta dos condôminos, mas em nome do Fundo e para o mesmo.

[...]

Atualmente, inclusive nas regulamentações emanadas da CVM, os bens integrantes da carteira do fundo de investimento (excetuado os fundos imobiliários) devem ser adquiridos e registrados em seu nome, demonstrando que, não obstante a ausência de personalidade jurídica, e corroborando a afirmação de Arnoldo Wald, possuem os fundos capacidade para adquiris e transmitir direitos. (PAVIA, Eduardo Cherez Pavia. Fundos de investimento: estrutura jurídica e agentes de mercado como proteção do investimento. São Paulo: Quarrtie latin, 2016, p. 41-42)

Parece mesmo ser a intenção do legislador, em harmonia com as disposições infralegais do órgão público supervisor, estabelecer a natureza de condomínio, visto que, em atenção à ausência de personalidade jurídica, para o caso específico dos fundos imobiliários, definiu no art. 2º da Lei 8.668/1993 que se constitui condomínio. Em vista da natureza de condomínio, o art. 6º dispõe que os bens dos Fundos Imobiliários são adquiridos pelo administrador, em caráter fiduciário.

Assim, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios - FIDCs atuam no mercado financeiro, especificamente de capitais, e são regulados e fiscalizado pela CVM, conforme a normatização de regência, possuindo: a) um administrador credenciado pela CVM para esse exercício; b) os cotistas (titulares de cota, valor mobiliário correspondente a uma fração ideal do patrimônio do fundo, escriturais e nominativas; c) um custodiante, credenciado pela CVM para a prestação do serviço, que tem a obrigação de não acatar ordens arbitrárias.

De acordo com o art. 2º, I, da Instrução CVM n. 356/2001, os direitos creditórios são os direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, e os warrants, contratos e títulos referidos no § 8º do art. 40 dessa Instrução.


O FIDC ordinariamente opera mediante a securitização de recebíveis. É que “...o termo ‘securitização’ deriva do termo em inglês ‘securities’, que quer dizer, em tradução livre, ‘valores mobiliários’. É usado para definir a operação por meio da qual determinado fluxo de caixa futuro é utilizado como lastro para a emissão de valores mobiliários colocados à disposição de investidores, fazendo com que o risco de crédito de adimplemento deste fluxo de caixa, que antes era concentrado somente no titular original do referido fluxo, seja pulverizado a cada um dos adquirentes dos valores mobiliários emitidos" (PEREIRA, Evaristo Dumont de Lucena. FREITAS, Bernardo Vianna; VERSANI, Fernanda Valle (coords.). Fundos de Investimento – Aspectos Jurídicos, Regulamentares e Tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 231).

A securitização de recebíveis imobiliários está prevista no art. 8º da Lei n 9.514/1997; já a securitização de recebíveis financeiros foi originariamente instituída pela
Resolução n. 2.493/1998 do CMN, atualmente regulamentada pelas Instruções da CVM n. 356/2001 e 393/2003.

Segundo dados da Anbima, o mercado de securitização no Brasil atingiu, em 2017, o volume de aproximadamente US$ 95 bilhões, equivalente a cerca de 5% do PIB brasileiro. No mesmo ano, nos Estados Unidos, essa quantidade era de quase US$ 11 trilhões, correspondente a mais da metade do PIB norte-americano. No Reino Unido, as operações de securitização representaram em torno de 14% do PIB, correspondentes a mais de US$367 bilhões.

A securitização, cujo principal veículo são os FIDCs, é operação que, inegavelmente, está em expansão, permitindo mais amplo acesso ao crédito aos mais diversos setores da economia. Apenas para que se tenha ideia, segundo dados divulgados pela Uqbar, no período de 1º de janeiro de 2018 a 5 de julho do mesmo ano, houve emissões de cotas de FIDCs correspondentes ao montante de R$ 14.563.679.714,00 (quatorze bilhões, quinhentos e sessenta e três milhões, seiscentos e setenta e nove mil, setecentos e quatorze reais).

Ademais, a securitização caracteriza-se pela cessão de créditos originariamente titulados por uma unidade empresarial para outra entidade, que os deve empregar como lastro na emissão de títulos ou valores mobiliários, colocados à disposição de investidores, com o escopo de angariar recursos ordinariamente para o financiamento da atividade econômica:

Em um panorama geral, a securitização de recebíveis caracteriza-se pela cessão de créditos originariamente titulados por uma unidade empresarial para uma outra entidade, que os deve empregar como lastro na emissão de títulos ou valores mobiliários, colocados junto a investidores, no escopo e angariar recursos ordinariamente para o financiamento da atividade econômica. A instituição cessionária dos créditos deve, direta ou indiretamente, coletar recursos resultantes do pagamento dos créditos cedidos, depositando-os em, conta bancária específica, cujas regras de movimentação são convencionadas pelas partes interessadas, tendo como standard orientador a liquidação da dívida por meio do crédito cedido ou dos valores em dinheiro resultantes de sua realização e, por outro lado, o retorno ao cedente dos valores que excedam o saldo devedor lastreado no crédito cedido. Não obstante, o mecanismo da securitização de recebíveis, acima resumido, pode ostentar diferentes particularidades, de acordo com a existência de norma, legal ou regulamentar, que discipline suas distintas modalidades, as quais, por sua vez, variam conforme a natureza do crédito cedido (comercial, financeiro, imobiliário, etc). (MENEZES, Mauricio Moreira Mendonça de. TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 212-223)

6. Desse modo, consoante a legislação e a normatização infralegal de regência, um FIDC pode adquirir direitos creditórios por meio de dois atos formais: a) o endosso, típico do regime jurídico cambial, cuja disciplina depende do título de crédito adquirido, mas que tem efeito de cessão de crédito; e b) a cessão civil ordinária de crédito, como no caso, disciplinada nos arts. 286-298 do CC, podendo, pois, ser pro soluto ou pro solvendo.

Nesse passo, é bem de ver que o art. 2º, II, da Instrução CVM n. 356/2001, com prudência e trazendo mais segurança jurídica à operação, expressamente se abstém de imiscuir-se na disciplina legal, ao prever que a cessão dos direitos creditórios é a transferência pelo cedente, credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o FIDC, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. O inciso XV preconiza que coobrigação é a obrigação contratual ou qualquer outra forma de retenção substancial dos riscos de crédito do ativo adquirido pelo fundo assumida pelo cedente ou por terceiro, em que os riscos de exposição ou de variação do fluxo do ativo permaneçam com o cedente ou com terceiro.

Outrossim, o art. 40-A dessa mesma Resolução orienta os gestores dos FIDCs no sentido de que o fundo poderá adquirir direitos creditórios, observada a vedação de que trata o § 2º do art. 39, e outros ativos de um mesmo devedor ou de coobrigação de uma mesma pessoa ou entidade no limite de 20% de seu patrimônio líquido.

No caso em julgamento, como visto, as instâncias ordinárias invocam precedentes relativos a escritórios de factoring - que não são instituição financeira - para solucionar a presente controvérsia acerca de cessão de crédito em operação de securitização, tendo por cessionário um FIDC.

A própria recorrida, na exordial, reconhece que, se fosse desconto bancário, seria possível o estabelecimento de garantia na cessão de crédito.

Em alentado estudo, Mauricio Moreira Mendonça de Menezes pontua que, com o incremento das relações econômicas, houve a necessidade de criar instrumentos jurídicos que facilitassem a substituição da posição do credor, invocando os abalizados escólios de Orlando Gomes e Enzo Roppo para assinalar que, em vista da aludida necessidade e percepção da funcionalidade do crédito, ele passou a ser visto como um valor patrimonial naturalmente disponível, resultando na denominada objetivação do contrato com o fito de tutelar a confiança e garantir a estabilidade, a ligeireza e o dinamismo das relações contratuais para transferências de riqueza.

O mesmo doutrinador menciona que, quanto à função da cessão comum de crédito, a complexidade da vida moderna a estendeu substancialmente, determinando seu emprego inclusive em operações realizadas no âmbito da atividade econômica, figurando muitas vezes ao lado de títulos de crédito. Exemplos podem ser encontrados em técnicas criadas para o atendimento de diferentes estruturas financeiras (i.e, regimes distintos de serviço de dívida), como a securitização de recebíveis e a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos imobiliários, além de determinadas operações bancárias.

Verifique-se:

A partir do incremento das relações econômicas - o que se constatou substancialmente no curso do Séc. XIX - o Direito passou a atentar para a criação de instrumentos jurídicos que viessem a facilitar a substituição da posição do credor. Logo, o que era inadmissível em tempos longíquos, em virtude do caráter personalíssimo da obrigação, passou a ser fundamental para o melhor aproveitamento do crédito, permitindo a sua utilização por um maior número de sujeitos, a um só tempo.

[...]

Em consequência, o sistema de transmissão de crédito conhece dois regimes distintos, sendo eles a cessão comum e a cessão por meio dos títulos de crédito.

[...]

Quanto à função da cessão comum de crédito, a complexidade da vida moderna a estendeu substancialmente, determinando seu emprego inclusive em operações realizadas no âmbito da atividade econômica, figurando muitas vezes ao lado de títulos de crédito. Exemplos podem ser encontrados em técnicas criadas para o atendimento de diferentes estruturas financeiras (i.e, diferentes regimes de serviço de dívida), como a securitização de recebíveis e a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos imobiliários, além de determinadas operações bancárias.

[...]

Outro complexo e sofisticado instrumento, performado por meio da cessão de crédito, consiste no fundo de investimento em direitos creditórios (FIDC [...]. Por sua vez, direito creditórios são definidos como "direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, de warrants e de contratos de compra e venda de produtos, mercadorias ou serviços para entrega ou prestação futura, bem como direitos e títulos representativos de natureza diversa assim reconehcidos pela Comissão de valores Mobiliários " (art. 2º, I, Instrução nº 356/2001).

[...]

Como se vê dos casos declinados, a função da cessão de crédito, quando inserida no bojo da atividade econômica com escopo especulativo, em muito se aproxima daquela desempenhada pelos títulos de crédito. Vale dizer que dita proximidade foi viabilizada por uma série de fatores, dentre os quais se destaca o fenômeno da objetivação dos direitos, adiante comentada.

[...]

Relembrando as palavras de Orlando Gomes, o primeiro passo para a admissão da transferência do crédito adveio da modificação do conceito de obrigação no Direito moderno, franqueando a percepção da funcionalidade e riqueza do crédito decorrente da relação jurídica, visto, portanto, como um valor patrimonial, naturalmente disponível e, assim, circulável.

[...]

Logo, a valoração das relações jurídicas privadas contribuiu para ressaltar o aspecto funcional e dinâmico dos direitos, não mais circunscritos à estrutura jurídica abstratamente prevista em lei, e caráter essencialmente estático.

Com efeito, a funcionalização dos direitos permitiu privilegiar a noção de interesse em comparação ao direito subjetivo.

[...]

Enzo Roppo, ao tratar da objetivação do contrato [...] expõe que "a razão unificante de todas estas regras é a exigência de tutelar a confiança (e enquanto isso, como sabemos, garantir a estabilidade, a ligeireza, o dinamismo das relações contratuais e, portanto, das transferências de riqueza).

[...]

Trazidos tais dados para a disciplina do crédito, é lícito afirmar que a objetivação dos direitos e a idéia de interesse permitiram flexibilizar ainda mais a posição dos sujeitos dessa relação, facilitando sua substituição e expandindo a tutela jurídica do terceiro cessionário do crédito, sobretudo em homenagem à boa-fé e à confiança.

Com a expressão objetivação do crédito, procura-se realçar a importância do interesse vinculado á satisfação do crédito, independentemente do fato desse interesse pertencer ao patrimônio do credor originário ou ter sido transmitido a terceiro.

[...]

Por isso, a objetivação do crédito decorre da constatação de que a própria situação creditória constitui um interesse juridicamente relevante, o qual  merecedor, por conseguinte, de uma tutela jurídica específica. (MENEZES, Mauricio Moreira Mendonça de. TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 212-223)

Não se desconhece haver acesa discussão doutrinária - além de que se trata de questão pendente de efetiva pacificação jurisprudencial - diante da controvérsia acerca da possibilidade do estabelecimento de garantia em operações de cessão ou de endosso a envolver factoring.

No entanto, a questão ora tratada é bem outra.

É que o FIDC é um condomínio que fornece crédito por meio de captação da poupança popular, sendo administrado por instituição financeira (banco múltiplo; banco comercial; Caixa Econômica Federal; banco de investimento; sociedade de crédito, financiamento e investimento; corretora de títulos e valores mobiliários ou uma distribuidora de títulos e valores mobiliários). Portanto, cumpre salientar que o art. 17, parágrafo único, da Lei n. 4.595/1964 espanca quaisquer dúvidas ao estabelecer que se consideram instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, a intermediação ou a aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Ou seja, para os efeitos dessa lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer uma das atividades referidas no citado artigo, de forma permanente ou eventual.

Ainda, o art. 18, § 1º, do mesmo Diploma legal esclarece que, além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou da seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplina dessa lei no que for aplicável, as bolsas de valores, as companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoa físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e a venda de ações e quaisquer outros títulos, realizando nos mercados financeiro e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras.

Portanto, a meu juízo, a operação, até mesmo por envolver a captação de poupança popular mediante a emissão e a subscrição de cotas (valor mobiliário) para
concessão de crédito, é inequivocamente de instituição financeira, bastante assemelhada ao desconto bancário.

Note-se:

As empresas podem encontrar capital para suas atividades tanto no mercado de capitais quanto no mercado bancário. A vantagem do mercado de capitais é o custo reduzido para obter recursos: não se paga pela intermediação, que é a nota característica da atividade bancária. As empresas obtêm recursos dos investidores diretamente, e é também diretamente que estes são remunerados.

[...]

Um mercado de capitais desenvolvido e eficiente é de grande valia para a vida econômica de um país. Garantem-se mecanismos de crescimento econômico sem grande interferência estatal e baixo custo para os empreendedores.

[...]

Dentro deste universo, para aqueles que participam e realizam negócios no mercado, é importante que se tenha certeza e segurança de que os negócios serão honrados e concluídos, assegurando-se que a vontade manifestada na negociação será realmente concretizada (PEREIRA FILHO, Valdir Carlos. WALD, Arnoldo (Org.). Doutrinas essenciais: Mercado de Capitais. Vol. VIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 310).

Aliás, Ary Oswaldo Mattos Filho pontua que a criação dos FIDCs agregou ao mercado financeiro "outras instituições que passam a poder exercitar tarefa tipicamente bancária do desconto, e isso através de instituições constantes do universo da distribuição de valores mobiliários, sendo o capital necessário para tanto coletado junto a investidores com recursos disponíveis para subscrever cotas" (MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. Direito dos valores mobiliários. São Paulo: FGV, 2015, vol. I, tomo 2, p. 365).

Por outro lado, no tocante especificamente ao contrato de factoring, alguns dos fundamentos da corrente que não admite o estabelecimento de garantia para a operação de fomento comercial consistem justamente no fato de que essa operação costuma cobrar taxa maior de desconto (deságio maior) e de que isso serve também para não se confundir com o contrato privativo de instituição financeira.

Por todos, esse é o escólio de Marlon Tomazette:

A nosso ver, o faturizado não é, em regra, responsável pelo pagamento dos créditos transferidos à faturizadora. No contrato de factoring, há a transferência dos riscos para a faturizadora, prova disso é a cobrança de uma taxa maior de desconto. Outrossim, é certo que a responsabilização do faturizado acabaria confundindo o factoring com o contrato de desconto bancário, privativo de instituições financeiras. (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 145)

No caso, como há a captação de poupança popular dos próprios cotistas, além da eficiência da engenhosa estrutura a envolver a operação dos FIDCs, que prescinde de intermediação, o deságio pela cessão de crédito dos direitos creditórios é menor que nas operações de desconto bancário, razão pela qual é descabida a tese exposta na exordial acerca de que a operação se distancia do desconto bancário, a justificar a nulidade da garantia, em prejuízo dos condôminos do Fundo recorrente.

7. Por certo, como foi apurado pelas instâncias ordinárias que, como é usual nas operações a envolver desconto bancário, trata-se de cessão pro solvendo em que a recorrida figura como garante (devedora solidária, nos moldes do art. 828 do CC) na operação de cessão de crédito realizada pela empresa de que é sócia (contrato acessório de fiança firmado no instrumento contratual da cessão de crédito), é bem de ver que o art. 296 do CC, dispositivo tido por violado, é claro ao estabelecer que, se houver estipulação, o cedente é responsável ao cessionário pela solvência do devedor.

Não há também nenhuma vedação legal a que a sócia da empresa cedente figure na operação como fiadora, sendo, a título de registro, comum essa avença acessória nos contratos bancários a envolver crédito para empresas.

No ponto, vêm bem a calhar as ponderações do amicus curiae Instituto Brasileiro de Direito Civil - IBDCIVIL:

8. O FIDC se diferencia das empresas de factoring, porém, na medida em que não fornece ao cessionário os serviços de gestão de créditos e cobranças que com frequência são oferecidos pelas faturizadoras, restringindo-se à aquisição (com deságio) de créditos como forma de aplicação financeira dos recursos aportados pelos seus quotistas.

9. Observa-se, portanto, que outra importante diferença é que, ao contrário dos faturizadores, o FIDC promove a efetiva securitização dos direitos creditórios adquiridos, considerando que estes passam a integrar seu patrimônio – e o qual, por sua vez, é representado por suas quotas, que poderão circular no mercado de capitais.

10. Tais quotas consubstanciariam, ainda, ativos com precificação mais precisa e associados a maior segurança jurídica que os direitos e títulos de crédito adquiridos, assegurado pelas normas de compliance próprias aos fundos de investimento (como, no caso dos FIDCs, a obrigatória avaliação trimestral da carteira por agência de rating).

13. Normalmente, em tais arranjos contratuais, o risco do inadimplemento do crédito cedido corresponde ao ágio percebido pelo cessionário.

14. Por outro ângulo, o fato de o cessionário assumir este risco e os custos de cobrança, afastando-os do cedente, igualmente justificaria que este recebesse menos que o valor integral do crédito.

15. No que diz respeito à delimitação do risco alocado, a cessão de crédito, como forma de transmissão das obrigações prevista no vigente Código Civil, pode assumir duas espécies:

i. a cessão de crédito pro soluto, na qual o cedente responde somente pela existência do crédito; e

ii. a cessão de crédito pro solvendo, na qual as partes podem convencionar que o cedente garanta ao cessionário a solvência do devedor.


[...]

52. Por fim, o IBDCivil, em sua condição de amicus curiae, opina favoravelmente ao direito dos FIDCs buscarem tutela jurisdicional para efetivar previsão de responsabilidade do cedente de direitos creditórios pelo adimplemento, respeitando-se as demais imposições legais.

8. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente o pedido formulado na exordial dos embargos à execução, estabelecendo custas e honorários advocatícios sucumbenciais, arbitrados em 12% do valor atualizado da causa, que serão integralmente arcados pela embargante, observada a eventual gratuidade de justiça.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

QUARTA TURMA
 
Número Registro: 2018/0041251-0                                                                                                                              PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.726.161 / SP
 
Números Origem: 00694276120128260100 20170000198751 20170000388209 5830020121078229 694276120128260100

PAUTA: 06/08/2019                                                                                                                                                      JULGADO: 06/08/2019

Relator
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. MARCELO ANTÔNIO MUSCOGLIATI

Secretária
Dra. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
 
AUTUAÇÃO
 
RECORRENTE : MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS

ADVOGADO : JOSE LUIS DIAS DA SILVA - SP119848

RECORRIDO : DEBORA ANDRADE LAPIQUE

ADVOGADOS : RAPHAEL GARÓFALO SILVEIRA - SP174784
MARILIA DE MORAES NEVES - SP315627
ANDRÉ EDUARDO BRAVO - PR061516

INTERES. : COMISSAO DE VALORES MOBILIARIOS - "AMICUS CURIAE"

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : CHRISTIAN TARIK PRINTES - SP316680

INTERES. : ANBIMA - ASSOCIACAO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DOS MERCADOS FINANCEIRO E DE CAPITAIS - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICARDO ZAMARIOLA JUNIOR - SP224324
LUCIANO DE SOUZA GODOY - SP258957

INTERES. : ASSOCIACAO NACIONAL DOS PARTICIPANTES EM FUNDOS DE INVESTIMENTOS EM DIREITOS CREDITORIOS, MULTICEDENTES E MULTISSACADOS - (ANFIDC) - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS : RICIERE DONIZETTI LUZZIA - SP086752
RAFAEL MEDEIROS MIMICA - SP207709

INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL - IBDCIVIL - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADO : GUSTAVO JOSÉ MENDES TEPEDINO - RJ041245

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Transmissão - Cessão de Crédito
 
SUSTENTAÇÃO ORAL
 
Dr(a). ANDRÉ EDUARDO BRAVO, pela parte RECORRIDA: DEBORA ANDRADE LAPIQUE Dr(a). JOSE LUIS DIAS DA SILVA, pela parte RECORRENTE: MULTI RECEBIVEIS II FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS
 
CERTIDÃO
 
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira (Presidente) e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.