STJ - GARANTIA DA EXISTÊNCIA DO CRÉDITO CEDIDO. DIREITO DE REGRESSO DA FACTORING RECONHECIDO

RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE
RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
ADVOGADO: ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA E OUTRO (S)
RECORRIDO: NACIONAL PLÁSTICOS INDÚSTRIA E COMÉRCIO S?A E OUTRO
ADVOGADOS: PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
                        PATRÍCIA SANTA CRUZ DE OLIVEIRA

EMENTA

DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. CONTRATO DE FACTORING. CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLUTO. ARTS. 295 E 296 DO CÓDIGO CIVIL. GARANTIA DA EXISTÊNCIA DO CRÉDITO CEDIDO. DIREITO DE REGRESSO DA FACTORING RECONHECIDO.

1. Em regra, a empresa de factoring não tem direito de regresso contra a faturizada - com base no inadimplemento dos títulos transferidos -, haja vista que esse risco é da essência do contrato de factoring. Essa impossibilidade de regresso decorre do fato de que a faturizada não garante a solvência do título, o qual, muito pelo contrário, é garantido exatamente pela empresa de factoring.

2. Essa característica, todavia, não afasta a responsabilidade da cedente em relação à existência do crédito, pois tal garantia é própria da cessão de crédito comum - pro soluto. É por isso que a doutrina, de forma uníssona, afirma que no contrato de factoring e na cessão de crédito ordinária, a faturizada?cedente não garante a solvência do crédito, mas a sua existência sim. Nesse passo, o direito de regresso da factoring contra a faturizada deve ser reconhecido quando estiver em questão não um mero inadimplemento, mas a própria existência do crédito.

3. No caso, da moldura fática incontroversa nos autos, fica claro que as duplicatas que ensejaram o processo executivo são desprovidas de causa - "frias" -, e tal circunstância consubstancia vício de existência dos créditos cedidos - e não mero inadimplemento -, o que gera a responsabilidade regressiva da cedente perante a cessionária.

4. Recurso especial provido.
 
ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.Votou vencido o Sr. Ministro Marco Buzzi.

Os Srs. Ministros Raul Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 20 de fevereiro de 2014 (Data do Julgamento)
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO

Relator

RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE 
RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
ADVOGADO: ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA E OUTRO (S)
RECORRIDO: NACIONAL PLÁSTICOS INDÚSTRIA E COMÉRCIO S?A E OUTRO
ADVOGADOS: PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
                        PATRÍCIA SANTA CRUZ DE OLIVEIRA E OUTRO (S)
RELATÓRIO
 
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

1. P S Factoring Fomento Comercial Ltda. ajuizou execução em face de Nacional Plásticos Indústria e Comércio S.A. e Gilson Carlos Trindade da Silva, objetivando recebimento de nota promissória dada em garantia de duplicatas sacadas contra a empresa Vinimaster Indústria Comércio e Confeções Ltda., e que foram recebidas pela exequente mediante endosso subscrito pelos executados, no âmbito de contrato de fomento mercantil.

Os executados, por sua vez, em sede de embargos à execução, alegaram nulidade dos títulos porquanto desprovidos de aceite e de protesto regular. Subsidiariamente, aduziram tratar-se de relação de consumo, motivo por que os encargos financeiros deveriam ficar limitados a patamares não abusivos.

O Juízo de Direito da 7ª Vara Cível da Comarca de Recife?PE acolheu os embargos, extinguindo a execução por inexistência de responsabilidade creditícia da embargante (fls. 229-238).

Em grau de apelação o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco apenas majorou a verba sucumbencial, mantendo a sentença nos termos da seguinte ementa:

EMENTA: CONTRATO DE FATURIZAÇÃO DE RISCO (ALEATÓRIO). NOTA PROMISSÓRIA VINCULADA AO CONTRATO DE FOMENTO (SEM QUALQUER MENÇÃO NO TÍTULO) - EMISSÃO VISANDO GARANTIR DUPLICATAS NEGOCIADAS COM EMPRESAS DE FACTORING - PERDA DA CARACTERÍSTICA CAMBIAL. DEFERIMENTO DO PLEITO DE NÃO INCLUSÃO (OU DIVULGAÇÃO) DOS NOMES DOS EXECUTADOS NOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - AUMENTO DO QUANTUM ARBITRADO. RECURSO INDEPENDENTE IMPROVIDO. RECURSO ADESIVO PARCIALMENTE PROVIDO. DECISÃO UNÂNIME (fl. 320).
Opostos embargos de declaração, foram eles rejeitados (fls. 57-62 e fls. 163-168).

Sobreveio recurso especial apoiado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, no qual se sustentou, além de dissídio jurisprudencial, ofensa ao art. 295 do Código Civil de 2002, arts. 333, inciso II, e 585, inciso II, do Código de Processo Civil.

Em suma, a recorrente alega ser válida a execução fundada em nota promissória vinculada a contrato de factoring celebrado para a cessão de direitos creditórios de duplicatas mercantis.

O recurso especial teve seu seguimento negado (fls. 135-136), tendo sido provido o Ag. n. 1.374.851?PE, para melhor exame da controvérsia.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE 
RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO

RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
ADVOGADO: ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA E OUTRO (S)
RECORRIDO: NACIONAL PLÁSTICOS INDÚSTRIA E COMÉRCIO S?A E OUTRO
ADVOGADOS: PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
                        PATRÍCIA SANTA CRUZ DE OLIVEIRA E OUTRO (S)
EMENTA

DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. CONTRATO DE FACTORING. CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLUTO. ARTS. 295 E 296 DO CÓDIGO CIVIL. GARANTIA DA EXISTÊNCIA DO CRÉDITO CEDIDO. DIREITO DE REGRESSO DA FACTORING RECONHECIDO.

1. Em regra, a empresa de factoring não tem direito de regresso contra a faturizada - com base no inadimplemento dos títulos transferidos -, haja vista que esse risco é da essência do contrato de factoring. Essa impossibilidade de regresso decorre do fato de que a faturizada não garante a solvência do título, o qual, muito pelo contrário, é garantido exatamente pela empresa de factoring.

2. Essa característica, todavia, não afasta a responsabilidade da cedente em relação à existência do crédito, pois tal garantia é própria da cessão de crédito comum - pro soluto. É por isso que a doutrina, de forma uníssona, afirma que no contrato de factoring e na cessão de crédito ordinária, a faturizada?cedente não responde pela solvência do crédito, mas a sua existência sim. Nesse passo, o direito de regresso da factoring contra a faturizada deve ser garantido quando estiver em questão não um mero inadimplemento, mas a própria existência do crédito.

3. No caso, da moldura fática incontroversa nos autos, fica claro que as duplicatas que ensejaram o processo executivo são desprovidas de causa - "frias" -, e tal circunstância consubstancia vício de existência dos créditos cedidos - e não mero inadimplemento -, o que gera a responsabilidade regressiva da cedente perante a cessionária.

4. Recurso especial provido.
 

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

2. Afasto, de início, a preliminar suscitada em contrarrazões relacionada ao não conhecimento do recurso especial por falta de recolhimento da multa aplicada por ocasião do julgamento dos segundos embargos de declaração.

O condicionamento ao recolhimento de multa para a interposição de qualquer outro recurso, nos termos do art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil, somente ocorre se houver reiteração de embargos de declaração tidos por protelatórios, com aplicação de multa nos primeiros e elevação da reprimenda nos segundos:

Art. 538. Os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos, por qualquer das partes.
Parágrafo único. Quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou o tribunal, declarando que o são, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente de 1% (um por cento) sobre o valor da causa. Na reiteração de embargos protelatórios, a multa é elevada a até 10% (dez por cento), ficando condicionada a interposição de qualquer outro recurso ao depósito do valor respectivo.
Nesse sentido, entre muitos outros, confiram-se os seguintes precedentes: REsp. 512.399?PE, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Rel. p? Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18?11?2008; AgRg no AREsp 87.812?RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19?06?2012.

Não é o caso em apreço.

A recorrente opôs os primeiros embargos de declaração, cuja rejeição não foi acompanhada de multa, não tendo sido reconhecido, ademais, o caráter procrastinatório da insurgência (fls. 163-168). Somente nos segundos embargos é que a multa de 1% foi aplicada, com a indicação do intuito protelatório do recurso (fls. 57-62), circunstância que não se insere no que dispõe a parte final do parágrafo único do art. 538 do CPC.

3. No mérito, há execução de título extrajudicial ajuizada por sociedade de factoring - faturizador - em face da faturizada, tendo por base o contrato de fomento mercantil juntado à inicial e nota promissória a ele vinculada. Alegou-se, como causa de pedir remota, o não recebimento de duplicatas supostamente "frias", sacadas pela faturizada contra terceiro e endossada ao faturizador, no âmbito do contrato de factoring.

Estes são os fundamentos da sentença:

A propósito, não se pode olvidar que a duplicata, sendo - repita-se - título causal, está vinculada à sua origem (de emissão atrelada a uma efetiva venda a prazo de mercadorias ou prestação de serviço), que admite cobrança pela via executiva mesmo que não contenha aceite, desde que devidamente protestada, acompanhada de comprovante de entrega e recebimento da mercadoria nos termos do art. 15, inc. II, da Lei 5.474?68.
Após detido exame dos autos, observo que a empresa exequente, ora embargada, não cuidou em juntar o demonstrativo do protesto do título aos autos, ou até mesmo o comprovante de entrega da mercadoria ou da suposta compra e venda realizada.
[...]
O certo é que não há como negar que a apelada assumiu o risco de as duplicatas se revelarem frias no vencimento, risco esse que, no caso dos autos, assumiu enorme vulto, haja vista que nem sequer cuidou em carrear prova de protesto ou diligência prévia acerca da robustez das cártulas, que tisna de frias com base unicamente na declaração unilateral da empresa sacada (fl. 29).
Quando do oferecimento de sua inicial executória ou de sua impugnação aos embargos, a empresa exequente não procedeu à juntada aos autos do título ou dos documentos que comprovassem que a mesma efetivamente diligenciou a respeito do lastro e origem das cártulas, se tinha ou não aceite, ou o comprovante da entrega da mercadoria.
Diante de tais constatações, resta indubitável que a empresa de factoring não agiu com o cuidado devido, porquanto sequer trouxe evidências concretas e lhanas acerca da origem dos títulos que alcunhou unipolarmente de desprovidos de causa debendi.
[...]
Desta feita, só se pode atribuir os pesados efeitos jurídicos tais como a possibilidade de colocação em livre circulação no mercado e o encaminhamento a protesto, àquelas cártulas emitidas em obediência aos ditames legais, para que o título se encontre provido dos requisitos mínimos de validade (fls. 232-237).
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Na verdade, a alegação de invalidade das duplicatas é exatamente a causa de pedir deduzida na inicial, de modo que a celeuma consiste em saber se, caso fosse verificado que as duplicatas eram mesmo frias, teria ou não o endossatário - faturizador - direito de exigir do endossante - faturizada -, em regresso, os valores relacionados com as mencionadas cártulas. Vale dizer, mais uma vez, os títulos que aparelham a execução não são as duplicatas, mas a nota promissória e o contrato de fomento.

O acórdão recorrido, por sua vez, embora tenha transitado também sobre a questão da invalidade das duplicatas, trilhou, ao final, fundamentação um pouco diversa da sentença, entendendo não caber direito de regresso do faturizador contra o faturizado na hipótese de não pagamento dos títulos, porquanto o risco é da essência do contrato de fomento mercantil:

Na prática, é frequente que as faturizadoras exijam dos faturizados o endosso dos títulos cedidos, como forma de lhes cobrar em regresso os valores pagos, antecipadamente ou não. Os tribunais, no entanto, tem reconhecido que esta prática contraria a própria natureza do contrato de factoring, e assim, deve-se considerar eventual endosso praticado, atribuindo-lhe efeito de mera cessão civil de crédito (no qual o cedente não se responsabiliza pela solvência do devedor).
Nesse trilhar, em razão da própria transferência do risco para o faturizador, cabe a este proceder a uma análise criteriosa dos créditos objeto da faturização, visando aceitar apenas aqueles que lhe parecerem seguros. Tal cautela não foi adotada pela empresa recorrente, a qual assumiu o risco do inadimplemento dos títulos cedidos, devendo ser desconsiderada a cláusula que prevê a responsabilidade do faturizador pela solvência desses títulos (fls. 321-322).
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Em razão da apontada natureza do contrato de factoring, em cuja essência se insere o risco do inadimplemento, o acórdão recorrido também entendeu ser inválida a nota promissória:

Ademais, registre-se que o entendimento prevalecente é no sentido de que as notas promissórias emitidas para garantia de duplicatas negociadas com empresas de factoring descaracterizam-se e perdem sua característica cambial.
[...]
Assim, não merece guarida o argumento de que o objeto do feito executivo reside na violação de cláusula expressa do Contrato de Fomento Mercantil e na nota promissória que o acompanha (fl. 322).
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4. A doutrina, de fato, é praticamente unânime no sentido de que a empresa de factoring não tem direito de regresso contra a faturizada - com base no inadimplemento dos títulos transferidos -, haja vista que esse risco é da essência do contrato de factoring e por ele a faturizada paga preço até mais elevado do que pagaria, por exemplo, em um contrato de desconto bancário, no qual a instituição financeira não garante a solvência dos títulos descontados.

Aliás, essa é a principal diferença apontada pela doutrina entre contrato de factoring e o desconto bancário, este último de celebração exclusiva por instituição financeira:

O contrato bancário assemelhado ao fomento mercantil é, sem dúvida, o desconto. A principal diferença está no direito de regresso, na hipótese de inadimplemento pelo terceiro devedor, que não existe na faturização, mas está presente no desconto. De fato, enquanto a faturizadora garante o recebimento do valor faturizado, mesmo que inadimplente ou insolvente o devedor, o banco descontador não fornece essa garantia. Se, no vencimento, o devedor (consumidor ou adquirente) não realiza o pagamento, o banco pode cobrar o devido, em regresso, do cliente descontário, mas a faturizadora não tem nenhum direito contra o faturizado (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 145).
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Na mesma linha é o magistério de Arnaldo Rizzardo:

Leva-se em conta, ainda, que surgiu um tratamento especial e diferente que o desconto, e mesmo a cessão, em vários aspectos. Considera-se o custo de quem vende seus créditos, pagando um ágio ou um plus, relativamente ao valor inserido nos títulos. Não haveria sentido permitir-se, posteriormente, ao cessionário, ir contra aquele que pagou o título, o que se verifica pela diferença a menos recebida, quanto ao montante contido na cártula.
Uma vez admitido o direito de regresso, não encontra qualquer justificativa a remuneração ao faturizador. E a remuneração envolve precisamente o quantum correspondente ao risco que assume o factor pelas vicissitudes do crédito, inserindo-se nele a possibilidade de insolvência do devedor. Assim, o crédito é comprado pelo factor, que paga um preço abatido o correspondente ao risco (RIZZARDO, Arnaldo. Factoring. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 121).
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Com efeito, a impossibilidade de regresso em contrato de fomento mercantil decorre do fato de que a faturizada não garante a solvência do título, o qual, muito pelo contrário, é garantido exatamente pela empresa de factoring.

De fato, com a compra dos títulos, encerra-se a relação jurídica existente entre os contratantes concretamente no tocante ao adimplemento do crédito transferido. Opera-se, nesse caso, uma cessão de crédito pro soluto, mostrando-se imprópria e contrária à natureza do pacto a inserção de cláusula pro solvendo, mediante a qual seria mantida a relação originária quanto ao adimplemento do crédito cedido, passando a ser garantidora a faturizada, o que autorizaria a ação regressiva.

Tal circunstância, todavia, não tem o alcance de afastar toda e qualquer responsabilidade da cedente em relação à existência do crédito, haja vista que tal garantia é própria da cessão de crédito comum - pro soluto.

É por isso que a doutrina, de forma uníssona, afirma que no contrato de factoring e na cessão de crédito ordinária a faturizada?cedente não garante a solvência do crédito, mas a sua existência sim.

A título de exemplo, a faturizada não se responsabilizaria perante o faturizador pelo pagamento de duplicata sacada regularmente, na hipótese de inadimplemento do sacado. Obrigar-se-ia, porém, por duplicata fria, sacada fraudulentamente, sem causa legítima subjacente.

Cuida-se, na verdade, de expressa disposição legal, nos termos do que dispõem os arts. 295 e 296 do Código Civil de 2002:

Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.
Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.
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Confiram-se, nesse particular, os comentários de Flávio Tartuce aos mencionados dispositivos legais:

A contrário do pagamento em sub-rogação, a cessão de crédito pode ser onerosa. No último caso, o cedente, ainda que não se responsabilize expressamente, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu (art. 295 do CC). Deve ficar claro que essa responsabilidade é tão somente quanto à existência da dívida.
[...]
Exemplo típico em que ocorre a cessão de crédito onerosa é o contrato de faturização ou factoring. Nesse contrato, o faturizado transfere ao faturizador, no todo ou em parte, créditos decorrentes de suas atividades empresárias mediante o pagamento de uma remuneração, consistente no desconto sobre os respectivos valores, de acordo com os montantes dos créditos. Nesse contrato, em outras palavras, os títulos são vendidos por valores menores.
Em regra, o cedente não responde pela solvência do devedor ou cedido (art. 296 do CC). Portanto, para o Direito Civil brasileiro, a cessão de crédito é pro soluto, sendo regra geral. Isso ocorre no contrato de factoring, por exemplo, situação em que o faturizado não responde perante o faturizador pela solvência do devedor, sendo a ausência de responsabilidade um risco decorrente da natureza do negócio (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 364).
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Na mesma direção, Gustavo Tepedino assevera:

Na cessão onerosa, o cedente é responsável pela existência do crédito transferido no momento da cessão, mas não pela solvência do devedor, como dispõe o art. 296, infra [...].
A garantia visa a evitar o enriquecimento sem causa do cedente, abrangendo a própria existência do débito e sua legitimidade, bem como a existência dos acessórios (fiança, hipoteca, etc.), como consequência do disposto no art. 287, não já a sua eficácia em garantir o pagamento (Clovis Bevilaqua, Código Civil, vol. IV, p. 188). A responsabilidade do cedente pode derivar de diversas situações: da própria inexistência do vínculo, à vista de uma nulidade; de uma exceção que opere a extinção da obrigação, como a compensação, desde que decorrente de fato anterior à cessão; ou ainda de uma demanda relativa à titularidade, quando o cedente transfere coisa alheia. Frequentes são as hipóteses de perda judicial do crédito, justificando-se a responsabilização do cedente porque, mesmo que a decisão seja posterior à cessão, é como o crédito jamais tivesse existido.
[...]
Distinguem-se, assim, as cessões pro soluto e pro solvendo (v. comentário ao art. 286). Na primeira o cedente só garante a existência do crédito, na outra obriga-se a pagar pelo devedor solvente (TEPEDINO. Gustavo [et. al.]. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2 ed. (Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes). Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 294-295)
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Especificamente no que concerne ao contrato de factoring, Arnaldo Rizzardo diferencia com precisão a irresponsabilidade da faturizada pela solvência do crédito - já exposta anteriormente -, e a responsabilidade pela existência do crédito cedido:

Deve existir o crédito, ao ser realizada a operação de compra. É o que estabelece o direito positivo vigente. Do contrário, falharia um dos elementos da compra e venda, que é o objeto.
[...]
Deve o faturizado realmente ser credor, sob pena de ser obrigado a ressarcir o faturizador pelo valor recebido. Nestes termos ordena o art. 295 do Código Civil (art. 1.073 da lei revogada): "Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé" .
[...]
Extrai-se que o crédito deve ser verdadeiro, isto é, deve ter uma origem, ou representar um negócio. Se já extinto, pela prescrição, ou suspensa a exigibilidade, ou dependente de condição, não podia ser objeto de transmissão. De outro lado, impõe-se que realmente pertença ao cedente, ou que era legítimo do cedente, e não de outra pessoa. A titularidade é fundamental (RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit. p. 125-126).
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Deveras, parece claro que a própria higidez do negócio jurídico depende da existência de crédito, porquanto não se pode vender, por exemplo, um crédito que pereceu ou que nunca existiu, ou que não pertence ao vendedor ou mesmo um crédito forjado por expedientes fraudulentos.

Nesse passo, o direito de regresso da factoring contra a faturizada deve ser garantido quando estiver em questão não um mero inadimplemento, mas a própria existência do crédito.

Na verdade, penso que não reconhecer tal responsabilidade quando o cedente vende crédito inexistente ou ilegítimo representa compactuar com a fraude e a má-fé.

5. O caso em exame, segundo minha ótica, é exatamente a hipótese em que a factoring tem direito de regresso contra a faturizada, porquanto se trata de responsabilidade da cedente pela própria existência do crédito, nos termos da doutrina indicada e do art. 295 do Código Civil.

Embora não conste a inicial da execução nos autos, a sentença relata que o processo executivo foi desencadeado com o propósito de recebimento de nota promissória, mas em razão de "inexistência de causa debendi nas duplicatas numeradas na inicial, todas sacadas pela parte executada contra a empresa Vinimaster Ind. Com. e Confeções Ltda., cártulas essas que lhe foram endossadas pelos executados por força do contrato de fomento mercantil nº 032.611" (p. 229).

Os executados, por sua vez, não rebateram a tese de que as duplicatas por eles endossadas eram desprovidas de causa. Muito pelo contrário, até a reforçaram, pois sustentaram simplesmente que os mencionados títulos não continham requisitos indispensáveis que lhes dessem exequibilidade, quais sejam, o protesto ou o aceite (fls. 177-183).

Os fundamentos da sentença, na mesma linha, corroboram a deficiência extrínseca e intrínseca das duplicatas, ao afirmar que - além da falta de aceite e de protesto - não constavam documentos próprios da operação mercantil, "tais como: notas fiscais com canhoto assinado, de modo a comprovar entrega de mercadorias ou prestação de serviços", tendo concluído que"a empresa de factoring foi desidiosa, não agindo com o cuidado devido"(fls. 237-238).

Em sede de apelação, igualmente se constatou que "as duplicatas de fls. 16?28 dos autos de execução não apresentam aceite, não há documento indicativo de realização de protesto, nem comprovação de prova de entrega de mercadorias ou de prestação de serviço", tendo o desembargador vogal concluído, todavia, que cabia à empresa de factoring "a cautela quanto aos créditos objeto do negócio de faturização e, se uma atitude criteriosa não foi adotada, sobre ela recairão os ônus decorrentes" (fls. 325-326).

Ora, da moldura fática incontroversa nos autos, fica claro que as duplicatas que ensejaram o processo executivo são desprovidas de causa - "frias" -, e tal circunstância se insere em vício de existência dos créditos cedidos - e não de mero inadimplemento -, o que gera a responsabilidade regressiva da cedente perante a cessionária.

Nessa linha, há o precedente também envolvendo empresa de factoring, julgado por este Colegiado - embora com outra composição -, em que se fez a distinção entre inadimplemento e existência válida da duplicata, no sentido de que a ocorrência do negócio jurídico subjacente é condição necessária à existência legítima da duplicata, por força da necessária causalidade desse título (REsp 261.170?SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04?08?2009, DJe 17?08?2009).

Ficou constando o seguinte naquela ocasião:

É de se notar, de início, que a causalidade da duplicata reside apenas na sua origem, mercê do fato de somente poder ser emitida para a documentação de crédito nascido de venda mercantil ou de prestação de serviços. Porém, a duplicata mercantil é título de crédito, na sua generalidade, como qualquer outro, estando sujeita às regras de direito cambial, nos termos do art. 25 da Lei nº 5.474?68, ressaindo daí, notadamente, os princípios da cartularidade, abstração, autonomia das obrigações cambiais e inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé.
[...]
No caso dos autos, houve compra e venda mercantil apta a lastrear a emissão da duplicata, e o negócio jurídico subjacente somente foi desfeito depois de o devedor lançar no título o seu aceite e posteriormente ao endosso a terceiro de boa-fé.
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Com efeito - e a contrario sensu do que se afirmou no precedente acima mencionado -, é "fria", porque destituída de causa, a duplicata sacada se inexistente compra e venda mercantil ou prestação de serviços, circunstância que gera a responsabilidade do cedente (faturizado) perante o cessionário (faturizador).

6. É bem verdade que há precedentes que não permitiram o regresso da empresa de factoring, em situações que, aparentemente, diziam respeito a duplicatas "frias": REsp 992.421?RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Rel. p? Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21?08?2008, DJe 12?12?2008; AgRg no Ag 1115325?RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 01?09?2011, DJe 09?09?2011.

Em todas essas hipóteses, porém, inexiste nota promissória emitida como garantia do negócio jurídico relacionado ao factoring, o que diferencia os julgados do caso ora em exame.

Por outro lado, em reforço à tese ora adotada, há outros que permitiram, inclusive, o pedido de falência com base em nota promissória recebida como garantia de duplicatas apontadas como "frias" - sem lastro -, endossadas a empresas de factoring:

FALÊNCIA. NOTA PROMISSÓRIA. RELAÇÕES DECORRENTES DO CONTRATO DE DESCONTO DE TÍTULOS. FACTORING.
- Nota promissória emitida para o resgate de duplicatas frias objeto de factoring. Tal promissória é título hábil para instruir pedido de falência.
- É lícita a recompra de títulos "frios" transferidos em operação de factoring.
(REsp 419.718?SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 25?04?2006, DJ 22?05?2006, p. 191)
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Falência. Nota promissória. Relações decorrentes do contrato de faturização. Precedente da Corte.
1. Se a empresa cedente dos títulos, em decorrência de contrato de factoring, deu causa a que os mesmos não pudessem ser recebidos, fica responsável pelo pagamento.
2. Afirmando o Acórdão recorrido que os títulos estavam viciados na origem e que a nota promissória foi emitida de acordo com o contrato celebrado entre as partes, afastando a hipótese de ter sido preenchida em branco, nada impede que possa servir para instruir pedido de falência.
3. Recurso especial não conhecido.
(REsp 330.014?SP, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 28?05?2002, DJ 26?08?2002, p. 212)
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7. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial e, por consequência, rejeito os embargos à execução, condenando os executados ao pagamento de custas e honorários de sucumbência, os quais são ora fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais), com fundamento no art. 20, § 4º, do CPC, devendo prosseguir a execução.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE
VOTO-VOGAL
O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO: Srs. Ministros, estou de pleno acordo com o voto do eminente Relator, rogando vênia ao eminente Ministro Marco Buzzi, que, ao que sugere os debates, diverge do entendimento do Sr. Ministro Relator.
Dou provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE
VOTO
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Sr. Presidente, peço vênia à divergência do Sr. Ministro Marco Buzzi, porque considero acertada a distinção feita pelo eminente Relator a respeito do caso em que há inadimplência, em que não haveria essa responsabilidade, e o presente caso, em que há uma duplicata desprovida de causa, tendo sido o executado o próprio autor dessa fraude e, portanto, tem que responder por ela até nos termos do contrato que celebrou.
Dou provimento ao recurso especial.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.289.995 - PE 
RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
ADVOGADO: ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA E OUTRO (S)
RECORRIDO: NACIONAL PLÁSTICOS INDÚSTRIA E COMÉRCIO S?A E OUTRO
ADVOGADOS: PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
                        PATRÍCIA SANTA CRUZ DE OLIVEIRA E OUTRO (S)
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA: Sr. Presidente, pedindo vênia ao Sr. Ministro MARCO BUZZI, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator.
DOU PROVIMENTO ao recurso especial.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2010?0213969-0    PROCESSO ELETRÔNICO    REsp 1.289.995 ? PE
Números Origem: 120070578363 1863581 186358102 186358104
PAUTA: 20?02?2014    JULGADO: 20?02?2014

Relator
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RAUL ARAÚJO
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. ANTÔNIO CARLOS PESSOA LINS
Secretária
Bela. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
ADVOGADO: ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA E OUTRO (S)
RECORRIDO: NACIONAL PLÁSTICOS INDÚSTRIA E COMÉRCIO S?A E OUTRO
ADVOGADOS: PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
                        PATRÍCIA SANTA CRUZ DE OLIVEIRA E OUTRO (S)

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Espécies de Contratos - Contratos Bancários
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr (a). ANTÔNIO PAULO BERARDO CARNEIRO DA CUNHA, pela parte RECORRENTE: P S FACTORING FOMENTO COMERCIAL LTDA
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: 
A Quarta Turma, por maioria, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Votou vencido o Sr. Ministro Marco Buzzi.
Os Srs. Ministros Raul Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.
 
Documento: 1299216    Inteiro Teor do Acórdão    - DJe: 10/06/2014