Fomento

Inadimplência aumenta em fundos de ‘factoring’ na crise

Na pandemia, os fundos de direitos creditórios (FIDC) conhecidos como multicedentes e multisacados, que concentram duplicatas de curto prazo de pequenas e médias empresas, enfrentaram seu maior teste de estresse. A boa notícia, segundo especialistas, é que eles superaram a turbulência e mostraram resiliência na crise. Mas num cenário de juros muito baixos como o atual, fica o debate sobre como se comportarão essas carteiras daqui para a frente. Com cerca de R$ 19 bilhões em ativos, os fundos de fomento mercantil representam 8,5% do patrimônio total do mercado de FIDCs.

Estudo da Quantum Finance feito para o Valor mostra que a inadimplência nesses fundos dobrou em relação à média dos últimos anos e atingiu o pico de 30,87% em maio. Em junho, esse percentual recuou para 28,69%. A inadimplência reúne boletos que não foram pagos em dia e o fundo precisará fazer um acompanhamento ou esforço de cobrança. Quando o atraso supera um determinado prazo, normalmente 90 dias, o fundo faz a provisão para devedor duvidoso. Essas provisões historicamente ficavam ao redor de 12%; em maio e junho, superaram 18%. Na pandemia, algumas carteiras optaram por segurar provisões.
 

 
Os números são um retrato das dificuldades das pequenas e médias na crise, mas não necessariamente refletem perdas para o cotista do FIDC. Nesses produtos, há tipos diferentes de cotas. O consultor ou originador das operações fica com as cotas subordinadas, que sofrem as primeiras perdas, se elas existirem.

A maioria dos investidores está nas cotas seniores, que só são atingidas depois de consumidas as subordinadas. Algumas carteiras ainda contam com uma cota intermediária, chamada mezanino. Mesmo com a inadimplência dobrando, não se tem notícia na indústria até aqui de nenhum fundo que tenha consumido a subordinação e atingido as cotas seniores.

Daniel Doll Lemos, diretor da Socopa, diz que essa classe de FIDCs entrou na crise como foco de preocupação, mas caminha para sair dela “bastante fortalecida”. “Houve problemas pontuais, mas nenhum evento de liquidação. Destaco a capacidade de adaptação ao momento de gestores e consultores. As áreas de cobrança foram rigorosas na crise. Apesar de maior atraso inicial nos pagamentos, eles foram liquidados antes da necessidade de provisões”, disse Lemos, durante webinar promovido pela consultoria Uqbar.

Na mesma conversa, Eduardo Herszkowicz, sócio do Cescon, Barrieu Advogados, observou que no início da crise houve temor efetivo de risco sistêmico por conta dos atrasos nos pagamentos dos créditos que pudessem levar à liquidação de fundos em cadeia. “Vimos uma correria para assembleias, para buscar ‘wavers’ [perdão] de investidores e alterações em índices financeiros além de aportes de recursos para manter a subordinação. Mas não vi nenhum caso de efetiva liquidação de fundo por esses problemas. O FIDC se mostrou resiliente”, disse.

O que os gestores fizeram foi segurar as novas operações de crédito para focar no acompanhamento e cobrança das duplicatas que já estavam em carteira. Conforme dados da Uqbar, nessa classe de fundos, conhecida na indústria como “FIDC de factoring”, o volume de recursos em caixa saiu de um percentual ao redor de 10% em fevereiro para 35% em maio e junho.

Ricardo Binelli, sócio da gestora Solis, destaca que nesse segmento o foco do gestor foi a adimplência da carteira, com os esforços em cobrança. “Diferentemente de outros produtos que em momentos assim vão buscar oportunidades, como um ponto de entrada num ativo que caiu demais, esse consultor colocou o pé no freio, reduziu o número de operações e limitou a exposição e seu risco”, afirma.

Ele acrescenta que esse profissional será muito cauteloso na maneira como voltará a dar crédito. “Já se nota uma volta de operações gradativa, feita com muita qualidade, privilegiando setores mais produtivos, com nível mais elevado de avaliações e checagens das operações, e com carteira mais pulverizada”, diz.

Para Binelli, o FIDC continuará com capacidade interessante de remuneração mesmo com o cenário de juro muito baixo e essa paralisação momentânea. Ele lembra que muitos dos fundos são de empresários de factoring que migraram para a estrutura do FIDC para se livrar de impostos. E eles vão continuar no negócio. Um período como o atual, de menor originação de operações, também não seria suficiente para atrapalhar o retorno dos fundos.

Outro aspecto do produto, segundo Binelli, é o spread excedente. Como exemplo, esses portfólios remuneram cotistas a CDI mais 4% ao ano, enquanto fecham descontos de duplicatas a taxas fixas que chegam a 2% ao mês. “Existe um excesso de retorno que paga os custos do fundo, absorve eventual inadimplência e ainda contribui para o retorno. Em condições normais, o spread excedente dá conta da inadimplência”, diz. No momento mais grave da crise, o FIDC que parou de operar deixou de gerar esse excedente. Mas, assim que operações forem retomadas, ele também voltará a acontecer.

Diego Matias, diretor comercial da Seven Fundo de Investimentos, avalia que a queda da taxa de juros tende a ser um novo paradigma também para o setor.

“Quando o FIDC Seven começou, há 4 anos, minha taxa média de desconto era 2,7% ao mês. Hoje é 1,5% ao mês. Para manter a mesma receita, seremos obrigados a crescer, mas nos expondo a mais risco de crédito, na situação atual da economia”, afirma Matias. Nesse novo ambiente, ele acredita que ter escala será fundamental. “É possível que FIDCs pequenos e médios sejam incorporados pelos grandes, ou por aqueles de bancos, securitizadoras e fintechs.”

No entender de Matias quem opera alavancado não conseguirá se manter. “Os cotistas da mezanino e sênior vão ver que o FIDC tem muito mais capital de fora (dívida com investidores) do que patrimônio na subordinada ao observar aumento de inadimplência e PDD. E pedirão maior rentabilidade face ao risco de crédito. Mas a conta não irá fechar uma vez que o patamar de taxa das operações está muito baixo”, diz. É possível ainda, avalia, que fundos optem por devolver dinheiro para o investidor.

A Gestora SRM fez isso no final do ano passado, devolvendo R$ 400 milhões aos cotistas, já identificando que os spreads vinham caindo a níveis que deixaram de ser atrativos. Paulo Fróes de Oliveira, diretor da SRM, afirma que o momento fortalece aqueles que têm mais tempo de negócio, conhecem os clientes e fizeram investimento em tecnologia para analisar dados. “O apoio de dados históricos, de pontualidade de cada cedente e de cada sacado nos dá uma noção de score de crédito importante nessa hora”, diz o executivo, reforçando a relevância do relacionamento com o cliente e do capital proprietário no negócio.

Uma fonte do setor que prefere não ser identificada avalia que o tempo de atuação é relevante no segmento. “E quem tem experiência já passou por momentos de crise, conhece o comportamento dos clientes e tende a ser mais assertivo. Mas as fintechs têm surgido no segmento com algorítimos que têm viés menos pessoal e mais pragmático na análise de dados. Vai ser relevante acompanhar o comportamento de ambos”, diz.

Na visão dele, no entanto, o crédito vai passar por uma mudança relevante na forma de concessão, com a democratização do acesso ao capital, barateando as taxas e favorecendo o cliente. “Na prática, o que acontece é que às vezes, por questão de dias, uma empresa desconta um recebível pagando 2% ao mês e não percebe o custo disso. Como o capital não é tão acessível, ele antecipa hoje, apesar de receber na semana que vem, talvez por desespero, sem fazer a conta dessa taxa. O crédito mais barato e acessível pode mudar isso.”

https://www.sinfacsp.com.br/noticia/inadimplencia-aumenta-em-fundos-de-factoring-na-crise-valor-economico