Economia

BC teme dano à competição com parceria em torno do WhatsApp

O Banco Central (BC) viu danos potenciais à concorrência com a associação entre o poder de fogo do WhatsApp e empresas de peso no setor de pagamentos. Na visão do regulador, o serviço já nasceria gigante e poderia prejudicar o desenvolvimento de fintechs capazes de desafiar os nomes tradicionais do mercado.

Na noite de terça-feira, o BC suspendeu o serviço de pagamentos por meio do aplicativo de mensagens controlado pelo Facebook, lançado na semana passada. O acordo se apoiava na infraestrutura de cartões e envolvia a credenciadora Cielo, as bandeiras Visa e Mastercard e os emissores Banco do Brasil (BB), Nubank e Sicredi.

A reação imediata de parte do mercado foi ver na atitude do regulador um entrave à inovação e uma defesa dos grandes bancos, mas o objetivo é o oposto, de acordo com fonte próxima ao BC. O maior problema, afirma, é uma “big tech” se unir a agentes já consolidados no mercado, formando um arranjo de pagamentos com enorme vantagem competitiva em relação aos demais participantes.

Outro ponto que incomodou o BC foi o anúncio da parceria sem que ela fosse formalmente apresentada à autoridade monetária. O Valor apurou que o regulador soube do lançamento por meio de um post do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, na rede social. Segundo a fonte, o BC sabia de um acordo para transferências instantâneas envolvendo Cielo e Visa, mas não sabia que envolvia o WhatsApp e que tinha a participação de poucas empresas.

O presidente da Visa no Brasil, Fernando Teles, explicou que o negócio desenvolvido com o WhatsApp trata-se de um “arranjo de transferência”, e que as regras da bandeira para operar nesse modelo, com qualquer cliente, haviam sido aprovadas pelo regulador há cerca de um mês, portanto o entendimento era de que não precisaria ser submetido a uma nova aprovação.

No modelo de arranjo de transferência, as tradicionais empresas do mundo de cartões - bandeiras, emissores e credenciadores - são contratadas para prestar todo o serviço de pagamentos, como checagem de informações e liquidação financeira, a uma empresa que tenha uma base de clientes, no caso, o WhatsApp. O pedido de autorização ao regulador acontece apenas quando atingido determinado volume de transações - o que não foi o caso.

“O BC pediu mais informações sobre o arranjo e devemos fornecer nos próximos dias, esperando o retorno o mais rápido possível para fazer eventuais ajustes”, afirmou Teles. “O modelo não tem nada de anticoncorrencial ou anticompetitivo, novos participantes podem entrar. E, pelo contrário, tem inovação para os consumidores finais.”

Fontes disseram ao Valor que o Facebook teve reuniões com o Banco Central para tratar do tema. Mas a falta de diplomacia no lançamento, de qualquer forma, custou pontos. É praxe na chegada de qualquer novo competidor e no lançamento de produtos com potencial para mudar a configuração do mercado a apresentação prévia ao Banco Central. O Facebook teria sido, além de tudo, reincidente. Em meados do ano passado, a rede social anunciou que lançaria uma moeda virtual sem ter discutido com reguladores, o que desagradou bancos centrais mundo afora.

Na visão do BC, arranjos que já nascem grandes e podem distorcer o funcionamento do mercado de varejo precisam ser analisados de forma detalhada, daí a decisão de suspender o acordo até que haja uma compreensão melhor dele.

Uma fonte do próprio governo, com conhecimento sobre políticas anticoncorrenciais, diz que, independentemente de o projeto ter envolvido grandes players, é preciso primeiro ver se de fato seria implementado com sucesso. “Mais importante do que ver o tamanho do negócio, é analisar se outros competidores conseguiriam chegar naquele tamanho de maneira rápida”, disse. “Mas precisa esperar o mercado responder. Tomar atitude severa, antes de saber eventuais consequências, pode ser redutor de inovação no Brasil.”

O Conselho Administrativo do Defesa Econômica (Cade) suspendeu a parceria entre Facebook e Cielo e determinou multa diária de R$ 500 mil cada se descumprirem a medida cautelar. Cálculos do órgão antitruste mostram que, no cenário mais conservador, os pagamentos via WhatsApp poderiam adicionar entre 144 mil e 720 mil transações ao ano para a Cielo, correspondentes a 1,8% e 10% do volume total anual. O Cade considerou que o WhatsApp possui mais de 120 milhões de usuários ativos no país.

A advogada Joice Midori Honda, sócia do Cescon Barrieu, afirma que o Cade tem agido previamente nesses casos para evitar danos irreparáveis ao mercado.

Fontes disseram à reportagem que a parceria decorreu de uma concorrência lançada pelo Facebook há dois anos, para a escolha do prestador de dois serviços nessa área: desenvolver uma plataforma de pagamentos embarcada na conta corporativa do WhatsApp e fazer o processamento das transações. A Cielo, dos acionistas Bradesco e Banco do Brasil, foi a escolhida. Procurada, a credenciadora não quis comentar.

Contra o argumento de que o negócio é anticoncorrencial, fontes apontam que a Cielo não teria exclusividade na prestação do serviço, sendo possível a contratação de outras credenciadoras para a plataforma. Embora seja líder na captura de transações com pagamentos no país, com cerca de 40% do volume, a Cielo não é a maior no caso de pequenos empreendedores, o foco da plataforma do WhatsApp. Nesse público, a PagSeguro, do grupo Uol, tem a maior fatia.

Executivos do Facebook e do WhatsApp passaram a tarde de ontem em reunião virtual com o presidente do BC, Roberto Campos Neto. A tendência é que o órgão exija que a rede social se torne uma instituição de pagamentos - como já fez o Google - ou de alguma forma se submeta à regulação. Segundo fontes do setor, o aplicativo deverá se conectar ao Pix, o sistema de pagamentos instantâneos que o próprio BC vem desenvolvendo e quer fomentar. Um caminho seria entrar como participante indireto, mas logo alcançar o volume para se tornar participante direto, isto é, sujeito a uma regulamentação mais forte.

Se isso acontecer, a parceria do WhatsApp com empresas do setor de cartões poderia deixar de fazer sentido. Teles, da Visa, disse que o negócio nasceu para ser interoperável com o Pix e que o contrato firmado deve ser mantido, na expectativa de liberação das transações pelo regulador. Ontem, circularam informações de que o regulador poderia antecipar de novembro para setembro o pré-lançamento do Pix, mas essa seria uma medida de difícil execução. Procurado, o BC não comentou o assunto.

O advogado Fabio Braga, sócio do escritório Demarest, afirma que, na análise de parcerias como essa, o BC costuma se preocupar com a visibilidade que terá das operações e com riscos potenciais ao sistema.

Alguns executivos do setor, no entanto, consideram que a preferência do BC pelo Pix e o envolvimento do regulador com o sistema podem ter prejudicado o serviço do WhatsApp. Não apenas nesse caso específico, há quem veja o órgão agindo com “mão pesada” em diversas situações, influenciando o funcionamento do mercado.

https://www.sinfacsp.com.br/noticia/bc-teme-dano-a-competicao-com-parceria-em-torno-do-whatsapp-valor-economico