TJMG - CDC NÃO APLICÁVEL - DIREITO DE REGRESSO POSSÍVEL

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. CONTRATO DE FACTORING. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. IMPOSSIBILIDADE. PESSOA JURÍDICA. AQUISIÇÃO DE INSUMO. RELAÇÃO COMERCIAL. CLÁUSULA PRO SOLVENDO. RESPONSABILIDADE DO FATURIZADO. POSSIBILIDADE. ILEGALIDADE NA COBRANÇA DE TAXA NÃO DEMONSTRADA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. 1- O Código de Defesa do Consumidor é inaplicável à relação decorrente de factoring contratada por pessoa jurídica, como insumo a ser utilizado na produção de sua atividade comercial. 2- O contrato de factoring impõe ao faturizador, em face da contraprestação paga pelo faturizado, assumir o risco a que se sujeita a atividade. Porém, há limitação aos riscos impostos ao faturizador, quando há ressalva contratual e determinação legal, o que possibilita o reconhecimento da responsabilidade do faturizado até mesmo pelo inadimplemento do título negociado. 3- Ausente a prova da ilegitimidade na cobrança de taxas no contrato de factoring, bem como da existência de recompra pelo faturizado de títulos negociados inadimplidos, a pretensão de revisão do contrato por ilegalidade e abusividade se mostra indevida.

Número do processo: 1.0024.06.008440-7/001(1)  Númeração Única: 0084407-20.2006.8.13.0024 
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Relator:  Des.(a) JOSÉ MARCOS VIEIRA 
Relator do Acórdão:  Des.(a) JOSÉ MARCOS VIEIRA
Data do Julgamento:  10/11/2010
Data da Publicação:  17/12/2010 
Inteiro Teor:    


APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.06.008440-7/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - APELANTE(S): MINAS PAPEL IND ARTEFATOS LTDA - APELADO(A)(S): MAGYRUS FOMENTO MERCANTIL LTDA - RELATOR: EXMO. SR. DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 16ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador BATISTA DE ABREU , incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Belo Horizonte, 10 de novembro de 2010.

DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA - Relator

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

O SR. DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA:

VOTO

Trata-se de Apelação interposta por Minas Papel Indústria de Artefatos Ltda., da sentença de f. 379/386-TJ, lançada nos autos da Ação Ordinária ajuizada por Magyrus Fomento Mercantil Ltda., que julgou improcedente o pedido inicial.

Inconformada, a Autora interpõe o presente apelo (f.339/393-TJ), em que alega, resumidamente, a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e do art. 157 do Código Civil, ante a ilegalidade e a abusividade do contrato de factoring firmado entre as partes. Aduz que os títulos negociados com a Apelada não foram recebidos em caráter pro solvendo, portanto, inadmissível que a inadimplência dos sacados dos títulos faturizados possibilite o direito de regresso contra a Recorrente, eis que o art. 296 do Código Civil não se aplica à relação de factoring, pois a faturizadora-recorrida é que deve assumir o risco da operação, sob pena de caracterização de contrato bancário de desconto de título. Assevera que a perícia técnica identificou a cobrança de juros nas operações realizadas, que foram camuflados por taxa denominada 'P L' (pro labore). Afirma que a Apelante era obrigada a recomprar os títulos inadimplidos, o que caracteriza o desconto bancário de duplicatas.

Contrarrazões às f.399/401-TJ, em que pugna a Apelada pelo improvimento do recurso.

Conheço do recurso, pois presentes os pressupostos de admissibilidade recursal.

Cinge-se a controvérsia dos autos à abusividade e à ilegalidade do contrato de factoring firmado entre as partes, o que embasa o pedido de revisão contratual da Apelante, alicerçado, ainda, no Código de Defesa do Consumidor.

De início, registro que o Código de Defesa do Consumidor somente se aplica às relações de consumo e, 'in casu', a relação desenvolvida pelas partes é plenamente comercial, pois não há consumo de bens ou de serviços pela Apelante em face do contrato de factoring.

Ao contrário, a Recorrente não ocupa a posição de consumidora na relação desenvolvida com a Apelada, eis que busca insumo para o desenvolvimento de sua atividade empresarial ao realizar o contrato de factoring, como se infere da lição de Fábio Ulhoa Coelho:

'Na definição do conceito jurídico de insumo, proponho que se distingam os bens adquiridos pelos empresários para emprego em sua empresa de acordo com a sua estrita indispensabilidade para o correspondente processo produtivo. Desse modo, seriam insumo, sob o ponto de vista jurídico, as aquisições de bens ou serviços estritamente indispensáveis ao desenvolvimento da atividade econômica explorada pelo empresário, e consumo, as demais. Quando a atividade econômica puder ser desenvolvida, sem alterações quantitativas ou qualitativas em seus resultados, apesar da falta de determinado bem ou serviço, então a sua aquisição será, juridicamente, consumo, e o empresário estará tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor. Ao contrário, se a ausência daquele bem ou serviço interferir, de forma considerável, nos resultados econômicos da empresa, revelando-se estritamente indispensável, então será considerada insumo a sua aquisição, aplicando-se, em decorrência, a legislação comercial.' (O empresário e os Direitos do Consumidor, Saraiva, 1994. p. 50).

Destarte, não é a Apelante consumidora final do serviço prestado pela Apelada, mas dele se utiliza como insumo para a produção de sua atividade comercial, portanto, inexistente a relação de consumo, inadmissível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às operações contratadas pelas partes, notadamente ante a inexistência do hipossuficiente na relação.

Sobre o tema, já decidiu esta Egrégia 16ª Câmara Cível, em acórdão de Relatoria do Des. WAGNER WILSON, de que participei como Revisor, que resultou na lavratura da seguinte ementa:

'APELAÇÃO CÍVEL. REVISÃO CONTRATUAL. INAPLICABILIDADE DO CDC. AUSÊNCIA DE PROVAS. Considerando que o capital tomado de crédito pela pessoa jurídica geralmente é empregado na sua atividade produtiva como capital de giro, descaracterizando a condição da pessoa jurídica como consumidora final, já que se torna mera intermediária do capital, não há o que se falar em hipossuficiência de qualquer das partes, não cabendo a tutela do Código de Defesa do Consumidor às respectivas relações jurídicas. O ônus da prova quanto à existência de condições contratuais ilegais e abusivas é do autor, a teor do disposto no art. 333, inciso I do CPC. Não basta que o mesmo ajuíze a ação, invocando abusividades genéricas, deixando a cargo do juiz a da parte contrária, a instrução do feito' (Apelação Cível nº 1.0702.02.022378-1/001, rel. Des. WAGNER WILSON, j. 27.05.09, 'DJ' 24.07.09, grifos da transcrição).

No tocante à abusividade e ilegalidade nas cláusulas contratuais, as razões recursais restringem o debate ao direito de regresso da Apelada pelo inadimplemento dos títulos negociados, bem como à cobrança de juros camuflados pela taxa denominada 'PL' (Pro Labore).

Compulsando o contrato firmado pelas partes, verifica-se a seguinte previsão contida na cláusula 27:

'Para garantir o fiel cumprimento deste contrato, seus aditivos e complementações, bem como assegurar a legitimidade e a veracidade dos títulos de crédito negociados, a CONTRATANTE, se confessa responsável pela eventual ocorrência de VÍCIOS REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO E INADIMPLÊNCIA em relação aos créditos negociados' (f. 78- TJ)

É indubitável que restou estipulada pelas partes a faturização com cláusula pro solvendo, em que a Apelada se responsabilizou pela solvência do devedor, como, aliás, autoriza o art. 296 do Código Civil:

'Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.'

O faturizado, em regra, não se responsabiliza pela inadimplência do sacado-devedor. Neste sentido, a lição de Fábio Ulhoa Coelho, em sua obra 'Curso de Direito Comercial', Ed. Saraiva, 10ª edição, vol. 3, 2009, São Paulo, pág. 143:

'Quando a sociedade empresária concede crédito aos consumidores ou aos adquirentes de seus produtos ou serviços, passa a ter uma preocupação empresarial a mais: a administração da concessão do crédito, que compreende controle dos vencimentos, acompanhamento da flutuação das taxas de juros, contatos com os devedores inadimplentes, adoção de medidas assecuratórias do direito creditício, etc. Além disso, o empresário, ao conceder crédito, assume o risco de insolvência do devedor. Claro que, em tese, a sociedade empresária não está obrigada a abrir crédito a quem procura seus produtos ou serviços. Contudo, a competição econômica, por vezes, não lhe dá outra alternativa. Se não criar facilidades de pagamento a consumidores ou adquirentes, a sociedade empresária pode perdê-los para os concorrentes. O contrato de fomento mercantil - que pode ser referido também pela expressão faturização, proposta por Fábio Konder Comparato (1978) - tem a função econômica de poupar o empresário das preocupações empresariais decorrentes da outorga de prazos e facilidades para pagamento aos consumidores ou adquirentes.

Pelo contrato de fomento mercantil, um dos contratantes (faturizador) presta ao empresário (faturizado) o serviço de administração do crédito, garantindo o pagamento das faturas por este emitidas. A faturizadora assume, também, as seguintes obrigações: a) gerir os créditos do faturizado, procedendo ao controle dos vencimentos, providenciando os avisos e protestos assecuratórios do direito creditício, bem como cobrando os devedores das faturas; b) assumir os riscos do inadimplemento dos devedores; c) garantir o pagamento das faturas objeto de faturização'.

Com efeito, o contrato de factoring impõe ao faturizador, em face da contraprestação paga pelo faturizado, assumir o risco a que se sujeita a atividade, razão pela qual os doutrinadores reconhecem a impossibilidade de repasse da responsabilidade pelo inadimplemento ao faturizado.

Todavia, os riscos impostos à faturizadora, ora Apelada, em face de sua atividade, se submetem às ressalvas contratuais e ao ordenamento legal.

Assim, as estipulações do contrato quanto à responsabilidade da Apelante por vícios redibitórios e evicção, encontram respaldo nos limites previstos no art. 295 do Código Civil, que dispõe acerca da responsabilidade do cedente pela 'existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu'.

Outrossim, pode-se afirmar que, mesmo diante da obrigação do faturizador pelo risco do inadimplemento dos devedores, a responsabilidade do faturizado pelo inadimplemento da dívida se impõe quando há ressalva contratual e endosso do cedente no título negociado.

Acerca do tema, válidos os comentários de José Costa Loures e de Taís Maria Loures Dolabela Guimarães:

'Em termos de garantias que podem cercar a cessão de crédito, distinguem os mestres as de direito e as de fato. As de direito decorrem da imposição da lei, inspirada na equidade (art. 295). As de fato, como acentuado por Carvalho Santos, podem variar 'ad libitum' dos contratantes, à sombra da máxima 'o que não se proíbe é permitido'. Assim, a responsabilidade do cedente é restrita à existência e à legitimidade do crédito, podendo, todavia, assumir outras, tal como a admitida no dispositivo sob exame, limitada ao estado atual ou futuro do devedor.

A convenção a respeito há de ser necessariamente expressa, ponderando Carvalho Santos que o compromisso do cedente estando expresso em termos vagos importa em tê-lo extensivo à garantia de fato, ou à solvência do devedor, pois a garantia de direito não depende de cláusula expressa' ('Novo Código Civil Comentado', Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2002, pág. 134).

Conclui-se, pois, que, havendo previsão contratual expressa e endosso do faturizado ao título negociado inadimplido pelo sacado-devedor, é admissível a responsabilização do cedente do crédito pelo pagamento da dívida diante do cessionário, no caso, o Faturizador.

Especificamente sobre o contrato de 'factoring', discorre César Fiúza, em 'Direito Civil, Curso Completo':

'É que na faturização opera-se verdadeira cessão de crédito. Por outros termos, se o devedor do título não pagá-lo, tanto pior para o faturizador, que não poderá regressar contra o faturizado, a não ser que este, expressamente, tenha assumido tal responsabilidade, seja endossando o título seja avalizando-o' (Direito Civil, 'Curso Completo', Del Rey, 2.ª ed., p. 410, grifos da transcrição).

O Colendo Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, pela validade do endosso prestado pelo faturizado:

'CHEQUE - ENDOSSO - FACTORING - RESPONSABILIDADE DA ENDOSSANTE-FATURIZADA PELO PAGAMENTO.

- Salvo estipulação em contrário expressa na cártula, a endossante-faturizada garante o pagamento do cheque a endossatária-faturizadora (Lei do Cheque, Art. 21)' (REsp 820.672/DF, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/03/2008, DJe 01/04/2008).

Este Egrégio Tribunal admite, em algumas situações, a responsabilidade do faturizado pela inadimplência do devedor, como se vê dos seguintes arestos:

'AÇÃO DE CANCELAMENTO DE PROTESTO - FATURIZAÇÃO - AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR DO TÍTULO - OPONIBILIDADE DE EXCEÇÕES PESSOAIS AO FATURIZADOR - COMPENSAÇÃO - EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO CAMBIAL - PROCEDÊNCIA.

(...) Como regra geral, o cedente dos créditos não pode ser responsabilizado pela solvabilidade do título de crédito negociado, pois é da natureza do factoring a assunção, pelo faturizador, dos riscos pelo inadimplemento dos créditos transferidos. Exceções são os casos em que o faturizado assume contratualmente a obrigação de pagamento do título ou age com má-fé, transferindo a cártula ao faturizador, cujo pagamento tem ciência que não será efetuado pelo sacado' (17ª CC, Apelação Cível nº 1.0024.04.502015-3/001, rel. Des. EDUARDO MARINÉ, j. 15.05.08, 'DJ' 05.06.08).

'DUPLICATA - ENDOSSO - EMPRESA DE FOMENTO MERCANTIL - INADIMPLEMENTO DO SACADO -EXECUÇÃO CONTRA O CEDENTE-ENDOSSATÁRIO - CÓPIA XEROGRÁFICA DOS TÍTULOS - PEDIDO DE FALÊNCIA CONTRA O SACADO - POSSIBILIDADE -RECURSO PROVIDO.

Como regra geral, tem-se que o cedente dos créditos não pode ser responsabilizado pela solvabilidade do devedor do título de crédito negociado, pois é da natureza do factoring a assunção, pelo faturizador, dos riscos pelo inadimplemento dos créditos transferidos.

Contudo, o cedente-endossante assume a responsabilidade pela solvabilidade do título, caso tenha se declarado solidariamente responsável pelo cumprimento da obrigação.

O cedente- endossante não só endossou as triplicatas, em favor da factoring, como também as avalizou, através de aval emitido por Sebastião Gomes de Freitas, não como pessoa física, mas, como representante legal da Transportadora Segofre Ltda., o que torna o endossante responsável pela solvabilidade das triplicatas e parte legítima na execução. (...)' (17ª CC, Apelação Cível nº 2.0000.00.492557-7/000, rel. Des. EDUARDO MARINÉ, j. 16.06.05, 'DJ' 25.08.05, grifos da transcrição).

Não há dúvida, portanto, de que a cláusula 27, que prevê a responsabilidade da Apelante pelo crédito transferido à Apelada, não se mostra ilegal, nem abusiva.

Todavia, insta registrar, que o laudo pericial (f.136/337-TJ), 'in casu', não constatou que a Apelante tenha assumido a responsabilidade por títulos negociados com a Apelada e inadimplidos pelo sacador-devedor, eis que asseverou o 'expert':

'Em análise à documentação acostada aos autos, bem como em toda a documentação enviada a este Perito, não foram encontrados documentos que comprovassem a recompra de parte da Autora de título ou títulos transacionados.'

No que tange à cobrança de juros camuflados pela denominada 'PL' (Pro Labore), também não merece acolhimento o inconformismo recursal, eis que o laudo pericial reconheceu dita exigência como 'taxa', não apontando qualquer irregularidade em sua incidência.

Assim, não se desincumbindo a Apelante do ônus probatório que lhe cabia (art. 333, I, CPC), inadmissível que se acolha a pretensão de revisão contratual, por ausente a prova de ilegalidade e desequilíbrio no contrato de factoring em exame.

Com tais considerações, nego provimento ao recurso.

Custas recursais pela Apelante.

Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): BATISTA DE ABREU e SEBASTIÃO PEREIRA DE SOUZA.

SÚMULA :      NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.