TJSC - CHEQUE- OPERAÇÃO DE FACTORING - COMPROVAÇÃO DA CAUSA DEBENDI - DESNECESSIDADE

AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUES. FACTORING. EXTINÇÃO POR INÉPCIA DA INICIAL. FUNDAMENTO NA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CHEQUES PÓS-DATADOS. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DOS TÍTULOS PARA FUNDAMENTAR OPERAÇÃO DE FACTORING. OPERAÇÃO QUE NÃO PREJUDICA A NATUREZA DE COMPRA DE CRÉDITOS FUTUROS. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS QUE INDICAM A RELAÇÃO DE FATURIZAÇÃO. COMPROVAÇÃO DA CAUSA DEBENDI. DESNECESSIDADE. CÁRTULA QUE POSSUI REPRESENTATIVIDADE DO DÉBITO. PRESUNÇÃO LEGAL DA CAUSA DEBENDI ATÉ O TRANSCURSO DO PRAZO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO DE ENRIQUECIMENTO. EXEGESE DA LEI DO CHEQUE. SENTENÇA CASSADA.

Apelação Cível n. 2008.022930-5, de Joinville

Relator: Des. Jorge Schaefer Martins

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2008.022930-5, da comarca de Joinville (5ª Vara Cível), em que é apelante Taipa Fomento Mercantil Ltda, e apelado Joce Mieczniwski:

ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Comercial, por unanimidade, dar provimento ao recurso. Custas legais.

RELATÓRIO

Taipa Fomento Comercial Ltda. propôs ação monitória contra Joce Mieczniswski na qual visa cobrar crédito representado por cheques pós datados vencidos e não pagos emitidos pela ré.

Nas fls.22-29, o MM. Juiz de Direito determinou a emenda da inicial, para que a empresa autora cumprisse a seguinte determinação:

Ex positis, faculto a emenda da inicial por parte de Taipa Fomento Comercial Ltda para que indique claramente a causa petendi e, ainda, demonstre documentalmente o seguinte:

1º) Que formalizou as suas relações com o cliente por meio do Contrato de Fomento Mercantil elaborado e fornecido pela Anfac;

2º) A contabilização das operações efetuadas por provas contábeis, dentre elas: a) Contrato de Fomento Mercantil - formalizado e registrado para cada empresa-cliente; b) Aditivo ao Contrato de Fomento Mercantil - confeccionado a cada operação realizada; c) cópia do borderô - compõe o Aditivo ao Contrato de Fomento Mercantil; d) Nota Fiscal de serviços - discriminando os serviços prestados na operação; e) Cópia da carta-notificação ao sacado - com AR (aviso de recebimento) com indicação do assunto; f) Cópia das notas fiscais que originaram os títulos executivos apresentados - negociadas a cada operação; g) Original do comprovante da entrega da mercadoria - (liquidado o título, devolver o original para o cliente-contratante).

Emendada a inicial, o Magistrado a quo extinguiu ação por inépcia da inicial em razão da impossibilidade jurídica do pedido.

Irresignada, a empresa autora apelou e requereu a reforma da sentença sob os argumentos de que está comprovada a relação de factoring e de que não há óbice à faturização de cheque pós-datado.

Após, os autos ascenderam a esta Corte.

VOTO

Inicialmente, é importante a conceituação da relação jurídica existente entre as partes, o popular factoring.

No entendimento de Fran Martins:

O contrato de faturização ou factoring é aquele em que um comerciante cede a outro os créditos, na totalidade ou em parte, de suas vendas a terceiros, recebendo o primeiro do segundo o montante desses créditos, mediante o pagamento de uma remuneração (Contratos e obrigações comerciais. Rio de Janeiro: Forense. 15 ed. p. 469).

De Caio Mario:

Pelo factoring ou faturização, uma pessoa (factor ou faturizador) recebe de outra (faturizado) a cessão de créditos oriundos de operações de compra e venda e outras de natureza comercial, assumindo o risco de sua liquidação. Incube-se de sua cobrança e recebimento. (A nova tipologia contratual no direito brasileiro. RF 281/12. in RIZZARDO, Arnaldo. Factoring.)

E Arnaldo Rizzardo:

O sentido tradicional de factoring não oferece maiores dificuldades. Pode-se afirmar que se está diante de uma relação jurídica entre duas empresas, em que uma delas entrega à outra um título de crédito, recebendo, como contraprestação, o valor constante do título, do qual se desconta certa quantia, considerada a remuneração pela transação. (Factoring. São Paulo: Revista dos Tribunais. 3 ed. p. 14).

Dessa forma, identificados o contrato de formento mercantil (fls. 35/39), o aditivo contratual referente aos cheques faturizados (fl. 12), a contabilização do contrato de factoring (fl. 20) e o contrato social da empresa factor firmado na forma da lei (fls. 06/12), fica evidente nos autos a existência da relação jurídica de factoring entre as litigantes.

Portanto, resta ao recurso a análise sobre a possibilidade jurídica de realização da operação de factoring com base nos cheques pós-datados e sobre a exigibilidade de comprovação da causa debendi para a propositura da ação.

A esse respeito, conquanto a operação de faturização tenha se originado com a aquisição de créditos representados por faturas em que foram emitidas duplicatas, é notório que hoje no Brasil existe ampla utilização no comércio do chamado "cheque pré-datado", o qual, em verdade, representa emissão de título que mais adequadamente se enquadraria no conceito de "cheque pós-datado". Todavia, ainda que o título seja diverso da tradicional fatura, em nada modifica-se a natureza de compra de créditos futuros, que constitui a verdadeira essência da operação de faturização.

Nesse sentido, destaca-se que da própria decisão interlocutória que determinou a emenda da inicial é possível extrair doutrina pertinente para a análise do direito aplicável:

Mais explicitamente, outra não é a conclusão apresentada por Rogério Alessandre de Oliveira Castro, senão vejamos:

[...] a) a sociedade de factoring, quando ajuizar execução contra o possível emitente do título de crédito, deverá comprovar que este decorreu efetivamente de uma venda mercantil ou de uma prestação de serviços, sob pena de a ação ser julgada improcedente;

b) a cobrança judicial pela sociedade de factoring de cheques que não decorram efetivamente de uma venda mercantil fica prejudicada;

c) a sociedade de factoring poderá exercer o direito de regresso contra a empresa faturizada, cedente de títulos, caso fique comprovado que as mercadorias cujos créditos foram negociados foram a esta devolvidas;

d) a sociedade de factoring, por adquirir os títulos pro soluto e, assim, assumir o risco do negócio, não poderá voltar-se contra a empresa faturizada, caso o sacado não venha a pagá-los em seu vencimento;

[...] h) a sociedade de factoring poderá valer-se da ação monitória, inovação incluída no Código de Processo Civil (art. 1.102), para cobrar cheque prescrito do emitente, independentemente da comprovação de o crédito referir-se a uma venda mercantil [...] (ob. cit., p. 99 e 100) (sublinhei). (fl.28 dos autos).

Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que podem ser realizadas operações de factoring com base em cheques pós-datados:

Processual Civil. Comercial. Recurso especial. Execução. Cheques pós-datados. Repasse à empresa de factoring. Negócio subjacente. Discussão. Possibilidade, em hipóteses excepcionais.

- A emissão de cheque pós-datado, popularmente conhecido como cheque pré-datado, não o desnatura como título de crédito, e traz como única conseqüência a ampliação do prazo de apresentação.

- Da autonomia e da independência emana a regra de que o cheque não se vincula ao negócio jurídico que lhe deu origem, pois o possuidor de boa-fé não pode ser restringido em virtude das relações entre anteriores possuidores e o emitente.

- Comprovada, todavia, a ciência, pelo terceiro adquirente, sobre a mácula no negócio jurídico que deu origem à emissão do cheque, as exceções pessoais do devedor passam a ser oponíveis ao portador, ainda que se trate de empresa de factoring.

- Nessa hipótese, os prejuízos decorrentes da impossibilidade de cobrança do crédito, pela faturizadora, do emitente do cheque, devem ser discutidos em ação própria, a ser proposta em face do faturizado.

Recurso especial não conhecido (REsp n. 612.423/DF. Rela. Ministra Nancy Andrighi. Data do Julgamento 01-06-2006).

Dito isso, fica nítido que pode ser feita a compra de créditos futuros representados por cheques pós-datados em uma operação de faturização. Entretanto, ainda que válida, a operação não pode deixar de respeitar aos requisitos mencionados anteriormente no voto, além de, obviamente, ser representativa de uma atividade comercial da empresa.

Esse ponto, aliás, é a razão principal para a extinção do pleito sem resolução do mérito por parte do Magistrado na sentença, em que entendeu não ter sido comprovada a existência de causa debendi a justificar a emissão dos títulos, já na petição inicial.

Data venia do respeitável entendimento firmado no decisum, esta exigência não pode ser feita de ofício pelo Magistrado. Primeiramente porque se trata de exceção pessoal que deve ser arguida pela devedora, a qual inclusive demandará dilação probatória; e, em segundo plano, porque existe a presunção legal contida no título de que até o transcurso do prazo de 2 (dois) anos após o vencimento do prazo de execução (que é de 6 meses da emissão) o título é representativo da dívida nele contida.

Em razão dessas disposições trazidas pela lei do cheque (lei n. 7.357/85), conclui-se que até o esgotamento desse prazo prescricional está presumida a existência da causa debendi a partir da simples constatação da regularidade formal do título.

Nesse sentido, a jurisprudência desta Corte:

APELAÇÃO CÍVEL ¿ AÇÃO MONITÓRIA FUNDADA EM CHEQUE PRESCRITO ¿ DESNECESSIDADE DA DECLINAÇÃO NA EXORDIAL DA CAUSA DEBENDI ¿ TÍTULO ASSINADO EM BRANCO PELA RÉ E ENTREGUE A TERCEIRO, QUE O TRANSFERIU AO AUTOR ¿ RESPONSABILIDADE DA EMITENTE NÃO AFASTADA ¿ REJEIÇÃO DOS EMBARGOS MANTIDA ¿ HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS ¿ QUANTIA ADEQUADA ¿ RECURSO DESPROVIDO.

É desnecessária a exposição da relação que originou a emissão do título na petição inicial de ação monitória lastreada em cheque prescrito. [...]

(Apelação Cível n. 2003.025029-8, Rel. Des. Alcides Aguiar, j. 10-5-07).

E, também:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUE PRESCRITO. DESNECESSIDADE DE INDICAÇÃO DA CAUSA DEBENDI NA PETIÇÃO INICIAL. SENTENÇA ANULADA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 515, § 3º, DO CPC. FASE INSTRUTÓRIA CONCLUÍDA. ÔNUS DA PROVA. JUROS ABUSIVOS E CAPITALIZAÇÃO MENSAL. VEDAÇÃO. RECURSO PROVIDO EM PARTE.

A falta de indicação da causa debendi na petição inicial da ação monitória fundada em cheque prescrito não conduz à inépcia da inicial.

O § 3ª do art. 515 do CPC autoriza o julgamento do processo, quando a sentença julgou extinto o feito sem resolução do mérito, desde que esta pronta para tal.

Compete ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu o impeditivo, modificativo ou extintivo deste direito, nos termos do art. 333 do CPC.

A Medida Provisória 2.172-32/01 proíbe a cobrança de juros usurários, estando consolidado na jurisprudência que o patamar máximo é de 1%a.m., veda a aplicação da capitalização mensal (Apelação Cível n. 2006.016391-5, de Canoinhas. Rel. Des. Subst. Domingos Paludo).

Dessa forma, não há falar em impossibilidade jurídica do pedido, tampouco no indeferimento da petição inicial por outro argumento pautado em vício nas condições da ação ou pressuposto de desenvolvimento válido e regular do processo. Até mesmo porque, dados os documentos que estão exibidos nos autos, eventual irregularidade na operação de factoring só terá como ganhar força após o efetivo trâmite do processo e a consequente oportunização para a dilação probatória pelos litigantes.

Nesse mesma esteira, em casos análogos já julgou esta Corte:

APELAÇÃO CÍVEL. MONITÓRIA. CHEQUES PRESCRITOS. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. IRRESIGNAÇÃO DA EMPRESA DE FOMENTO MERCANTIL DEMANDANTE.

CHEQUES PRESCRITOS. DOCUMENTOS DE DÍVIDA ANEXADOS AO CADERNO PROCESSUAL QUE SE AFIGURAM INSTRUMENTOS HÁBEIS PARA A PROPOSITURA DO PROCEDIMENTO MONITÓRIO, O QUAL FORA AJUIZADO QUANDO AINDA NÃO ULTRAPASSADO O PRAZO BIENAL PARA A AÇÃO DE ENRIQUECIMENTO PREVISTA NO ART. 61 DA LEI DO CHEQUE. MANUTENÇÃO DA NATUREZA CAMBIÁRIA DA CÁRTULA. PRESCINDIBILIDADE DE ELUCIDAÇÃO DA CAUSA QUE DEU ORIGEM AO TÍTULO. ENDOSSATÁRIO DE BOA-FÉ. PRECEDENTES DESTE AREÓPAGO ESTADUAL.

ALEGADO DESENVOLVIMENTO REGULAR DA ATIVIDADE DE FACTORING MANTIDA PELA RECORRENTE. PROCEDÊNCIA. ELEMENTOS QUE INSTRUEM O CADERNO PROCESSUAL QUE NÃO REVELAM, COM A CERTEZA NECESSÁRIA, A PRÁTICA ILEGAL DA AGIOTAGEM. INVESTIGAÇÃO QUE DEVE SER MELHOR PROMOVIDA EMPÓS A FORMAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICO-PROCESSUAL. MODIFICAÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE, DETERMINANDO-SE O REGULAR PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO.

RECURSO PROVIDO (Apelação Cível n. 2008.075688-8, de Joinville. Rel. Des. José Carlos Carstens Köhler).

E, também:

MONITÓRIA. Fomento Mercantil. Indeferimento da inicial. Prática comercial ilícita. Inexistência de prova. Cobrança de cheques. Prosseguimento da demanda injuntiva. Possibilidade. Precedentes da Câmara. Sentença desconstituída.

Eventuais irregularidades praticadas pela faturizadora somente podem ser reconhecidas após formada a relação jurídico-processual, mediante insurgência do devedor.

A falta de prova da origem da dívida não enseja a extinção da cobrança por impossibilidade jurídica do pedido (Apelação Cível n. 2007.054797-0, de Joinville. Rel. Des. Subst. José Inácio Schaefer).

Nesses termos, cassa-se a sentença e determina-se o retorno dos autos ao primeiro grau para regular tramitação processual.

DECISÃO

Ante o exposto, deu-se provimento ao recurso.

Participaram do julgamento, realizado no dia 6 de dezembro de 2010, o Excelentíssimo Desembargador Jorge Luiz de Borba e o Excelentíssimo Desembargador Substituto Altamiro de Oliveira.

Florianópolis, 13 de dezembro de 2010.

Jorge Schaefer Martins

PRESIDENTE E RELATOR

 

Gabinete Des. Jorge Schaefer Martins